Via Outras Palavras -
Ao sabotar acordo entre país e seus credores, e favorecer fundos-abutres, Suprema Corte dos EUA arrisca-se a incendiar relações financeiras internacionais. |
Quando Cristina Kirchner concorreu à presidência da
Argentina pela primeira vez, em 2007, havia um anúncio de campanha em
que crianças pequenas respondiam à pergunta: “O que é FMI (Fundo
Monetário Internacional)?” Elas davam respostas engraçadinhas e
ridículas, tais como “FMI é um lugar com muitos animais”. O narrador,
então, dizia: “Conseguimos fazer com que seus filhos e netos não saibam o
que significa FMI.”
Até hoje, não há nenhum caso de amor entre o FMI e a
Argentina. O Fundo articulou o terrível colapso econômico de 1998-2002
no país, bem como numerosas políticas fracassadas nos anos anteriores.
Mas quando a Corte de Apelações para o Segundo Circuito dos EUA decidiu
em favor dos fundos-abutres, que tentam receber o valor integral da
dívida argentina, que compraram por 20 centavos o dólar, até mesmo o FMI
foi contra.
De modo que muitos observadores surpreenderam-se, na
segunda-feira passada (23/6), quando a Corte Suprema dos EUA recusou-se
até mesmo a rever a decisão do tribunal. A Corte Suprema precisa de
apenas quatro juízes para conceder petição para “certiorari”, ou rever a
decisão de instância inferior, e este era um caso extremamente
importante. A maioria dos especialistas concorda que ele tem sérias
implicações para o sistema financeiro internacional. Ainda mais
importante: a Corte de Apelações decidiu que, se a Argentina pagar os
mais de 90% dos credores que aceitaram um acordo de reestruturação da
dívida, entre 2005 e 2010, ela está obrigada também a pagar os
fundos-abutres1.
O que significa isso? No final de 2001, em meio a uma
recessão profunda e incapaz de financiar enormes pagamentos da dívida, a
Argentina entrou em moratória. Foi a decisão certa; a economia do país
iniciou uma recuperação robusta, apenas três meses depois. Quatro anos
mais tarde, 76% dos credores aceitaram uma reestruturação da dívida, que
incluiu a redução de cerca de dois terços do valor de seus créditos.
Por volta de 2010, mais de 90% dos credores havia aderido, aceitando
novos títulos no lugar dos anteriores.
A decisão do tribunal norte-americano significa que
um fundo-abutre, ou qualquer credor “resistente”, pode impedir ou
destruir um acordo anterior, negociado com o resto dos credores. Como
não existe algo como uma lei de falências para os tomadores de
empréstimo do governo, a decisão pode limitar severamente a capacidade
de credores e devedores chegarem a acordos civilizados, em casos de
crise da dívida soberana. Esta é uma grande ameaça ao próprio
funcionamento dos mercados financeiros internacionais.
Então, por que a Corte Suprema dos Estados Unidos
decidiu não julgar o caso? Talvez porque tenha sido influenciada por
uma mudança de posição do governo norte-americano, que o teria
convencido de que o caso não era tão importante. Ao contrário da França,
Brasil, México e do Prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz, o governo
dos EUA não entrou com um amicus curiae2
na Suprema Corte, apesar de ter feito uma apresentação, no caso. E –
aqui está o grande mistério – tampouco o fez o FMI, embora tenha
manifestado publicamente preocupação com o impacto dessa decisão.
Em 17 de julho de 2013, a diretora do FMI, Christine Lagarde, anunciou que o Fundo apresentaria um amicus curiae
na Suprema Corte norte-americana. Então o Conselho do FMI reuniu-se e,
de forma um tanto constrangedora, decidiu em sentido contrário, devido
às objeções dos EUA. Essa poderia ser a razão pela qual a Suprema Corte
não convidou o procurador-geral dos EUA para uma exposição e, ao final,
não reviu o caso. Mas quem seria o responsável pela reviravolta de
Washington?
Como em uma novela de Agatha Christie, há numerosos
suspeitos de ter cometido a ação. O lobby dos fundos-abutres – um grupo
bem relacionado, liderado por ex-integrantes do govenro Clinton –,
conhecido como Grupo Americano de Ação Argentina, gastou mais de 1
milhão de dólares no caso, em 2013. Além disso, há os suspeitos usuais
no Congresso, principalmente os neo-conservadores e a delegação da
Flórida, que querem mudar o partido político no poder na Argentina após
as eleições de outubro de 2015.
*Texto de Mark Weisbrot | Tradução: Inês Castilho.
---
1Fundos-abutres
(“vulture-funds”, em inglês), são fundos que investem em
“papéis-podres” – ou seja, títulos que perderam quase todo seu valor,
nos mercados financeiros. O fundos-abutres compram estes títulos por uma
parcela insignificante de sua cotação original, esperando lucrar mais
tarde, quando o devedor se recuperar e a cotação de sua dívida subir.
2Amicus Curie (“Amigos
da Corte”, em latim) é intervenção feita, num processo judicial, por
uma pessoa ou entidade julgada representativa e que, não sendo ligada
diretamente na disputa, tem interesse em influenciar seu desfecho.