24.1.19

OS ENCARCERADOS

SIRO DARLAN -


Não estava em meus planos exercer a judicatura, muito menos atingir o grau máximo da carreira na justiça estadual de um estado dos mais importantes e com maior nível de conflitos sociais, políticos e criminais da federação. O Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa, antiga capital da república, localizada estrategicamente entre o mar e as montanhas, como um paraíso na terra, dotada de um povo alegre, cantante e dançante, hospitaleiro e amoroso. Tudo conspirava para ser o melhor lugar do mundo para se viver. Até o fundo musical, dotado dos mais variados ritmos conduzia a um clima cinematográfico paradisíaco.

Todos sonham vir um dia para o Rio de Janeiro, conhecer e viver a realidade dessa cidade tão sonhada e desejada. Com todos esses ingredientes para um grande bolo de bondade, a inveja se instalou e primeiro tiraram o status de capital. Com essa medida levaram também os recursos, mas deixaram o ônus de ex-capital. Como polo turístico tradicional ficaram os problemas sociais sem orçamento e sem os necessários recursos, criando o cenário para o conflito. A arquitetura natural impôs uma convivência democrática entre os mais ricos e os mais pobres, o que embora seja saudável, acirra o olhar das diferenças econômicas e sociais.

As crises políticas e econômicas trouxeram outras mazelas, próprias de toda cidade grande, tais como o desemprego, a falta de políticas públicas de habitação e educação e saúde aumentaram a sensação das diferenças gritantes e o fosso que separa uns dos outros. A política do ódio foi acrescida com a chamada “guerra às drogas”, instrumento utilizado pelas elites para manter os pobres longe de toda e qualquer oportunidades de ascensão social. O governante que ousa inverter esse quadro investindo na educação e proteção aos mais pobres é logo taxado de “comunista” (que parece ser um agente do mal) e de “amigo dos bandidos”, considerando que os donos da mídia dominante elegem o morador de comunidades e pobres como “marginais em potencial” quando são na verdade marginalizados de seus direitos fundamentais.

A tal “guerra às drogas”, na verdade guerra aos pobres justifica uma política punitivista que considera as barrigas de mulheres de comunidade como geradoras de bandidos, como afirmou um governador, hoje preso, tem servido para preencher o sistema penitenciário com pessoas que poderiam muito bem-estar em liberdade ajudando a construir uma sociedade mais justa e igualitária. O judiciário, em sua grande maioria, vestiu o uniforme policial e despiu-se da toga impoluta, independente e imparcial que interpreta as leis e aplica-as como garantidores de direitos para se transformarem e agentes de segurança e carcereiros.

O Rio de Janeiro tem hoje uma população carcerária que aumenta a cada dia com as mais indignas condições de habitabilidade em total desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. Se a lei de execução penal (Lei 7210/84) fosse cumprida não haveria uma única unidade prisional aberta. Além das péssimas condições carcerárias que além de atentatória à dignidade da pessoa humana, ainda ostenta um percentual de 40% de presos provisórios, ainda não julgados. Os presos querem trabalhar e estudar, já que essas atividades lhes reduzem as penas e o Estado não lhes proporciona, descumprindo as leis.

As audiências de custódia foram implantadas por Resolução do CNJ, mas os critérios adotados na seleção dos magistrados não permitiram atingir seu objetivo e ainda são muito os presos mantidos encarcerados que podiam responder o processo em liberdade. Contudo a sensação de insegurança que tomou conta da opinião pública influencia o julgador que prefere atender aos clamores das ruas que aplicar a Constituição e as leis.

Recentemente ocorreu um fato que teve repercussão, embora não se trate de fato isolado. Um jovem negro, “reconhecido” por três pessoas foi preso acusado de latrocínio e permaneceu detido por mais de dez dias. Sua soltura só ocorreu por insistência de seus familiares que produziram provas de que o jovem estava em outro lugar no momento do crime. Trata-se, evidentemente de mais um caso de racismo estrutural, que é uma marca corrente das prisões em comunidades pobres.

Aliás a Sumula 70 que dá aos policiais que efetivam as prisões no Rio de Janeiro, ainda não revogada, é responsável de muitas dessas prisões injustas, pois dá um grau de veracidade aos policiais, que as péssimas condições de trabalho dos milicianos desaconselham. Depois da vida e da dignidade da pessoa humana, não há bem mais sagrado que a liberdade. Como reparar esse dano, mesmo que o Estado seja obrigado a indenizar, como já decidiu o STF, dinheiro nenhum será capaz de reparar cada dia sofrido no cárcere por um inocente. E, pensar que ainda há quem defenda a pena de morte, sem falar no slogan nazista “bandido bom é bandido morto”.

O Censo do Sistema Penitenciário do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro informa que em dezembro de 2018 haviam 51.390 presos, sendo 49.525 homens e 1865 mulheres, e 20.952 provisórios. Caso as audiências de custódia estivessem agindo com os critérios legais, o programa de remição de penas pelo trabalho, pela leitura e pelo estudo estivessem funcionando como tratado na Lei de Execução penal, certamente esses números seriam outros e estaríamos com resultados de redução da violência dentro e fora dos presídios muito superiores.

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Siro Darlan, Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e membro da Associação Juízes para a Democracia.