Por ALBERTO DINES - Via Observatório da Imprensa -
Nos telões de TV, também nas telinhas de celulares e tablets, nos blogs
e portais da rede, nos monitores dos computadores, no Facebook, no
YouTube, nos noticiosos das rádios e na capa dos lânguidos jornais em
berço esplêndido: o filme está em todas, mas não arrebata.
Cenas rápidas, impactantes, sequências vertiginosas, roteiro
alucinante, esta produção não está sendo assimilada suficientemente. Nas
cenas de horror todos morrem de rir, o que se pretendia como comédia é
trágico e os momentos edificantes, rigorosamente demolidores.
Que filme é este? Um blockbuster com todos os recursos
tecnológicos, escrito pelos melhores roteiristas, celebridades às
pencas, anunciado como imperdível e, no entanto, anódino. O que está
passando nas telas não é bem um filme, mas um extenso seriado, mais
comprido do que a Novela das Nove ou a Muralha da China. Original (mais
do que Boyhood), bem concebido e encenado. O único defeito é o
título. São muitos: alguns o chamam “A Marcha do Tempo”, outros preferem
“O show deve continuar”, “A força do destino”, “A Última Guerra”,
“Crepúsculo dos Deuses”, “Tempos Modernos”, “Primeira Página”, “Rebeldes
sem causa”, “Abutres”, “Revolução Traída”, “Todos os Leviatãs se
parecem”, “Pequenos ditadores”, etc etc. O melhor, “A incrível história
do mundo que encolheu”, foi embargado pelos produtores: negativo,
pessimista, ninguém o assistiria.
É o filme dos filmes, em HD, 3D, cores exuberantes, trilha sonora
sublime, nós no elenco e, atrás das câmeras, o autoengano levado à
enésima potência. Não obstante, condenado eternamente à condição de
sem-Oscar. O enredo deveria ser apaixonante, porém, nenhum dos três
jornalões de terça-feira (24/2) conseguiu reproduzi-lo ou, pelo menos,
oferecer um esboço: as 34 páginas do Globo, as 46 do Estadão e as 32 da Folha
não conseguiram captar o inglório e acabrunhante épico nem a sublime
tragicomédia da vida cotidiana que protagonizamos com tanto empenho.
Uma nova sessão de estupidez
Setenta anos depois do fim da 2ª Guerra Mundial, a Europa está
novamente de uniforme e armas engatilhadas preparando-se para nova
sessão de estupidez com a recém-nascida Ucrânia e sua velha vocação
reacionária no papel de pivô. Sete décadas depois de extinto, o
nazi-fascismo reaparece com força total falando húngaro, alemão, russo,
ucraniano, francês, inglês, árabe e até hebraico.
Cerca de 80 anos depois dos sangrentos “Processos de Moscou” e 75
depois do assassinato de Leon Trotsky, as sobras do monolítico império
bolchevique estão sendo partilhadas por notáveis figuras do calibre de
Nicolas Maduro, Cristina Kirchner, Kim Jong-un e Vladimir Putin (que
acaba de receber uma cantada pública da ultradireitista francesa Marine
Le Pen – Veja, edição 2414, Páginas Amarelas). Aliás, os dois
compõem um par perfeito, um tórrido romance entre o caudilho russo e a
candidata do caudilhismo francês daria ao filme uma picardia
insuperável.
A nova guerra mundial (3ª ou 4ª ?) já está em curso desde 2001 –
difusa, móvel, imprevisível, com armas de destruição em massa
impensáveis. Deuses, profetas e fanatismo – nenhum míssil ou bomba os
supera em matéria de letalidade. A guerra está instalada na África
Ocidental, Magreb, Oriente Próximo e Médio, Ásia Menor e Central. Mas
outras guerras, surdas, atrás das linhas de frente, estão sendo ativadas
rapidamente. A Guerra Total foi substituída pela Guerra Permanente e,
mesmo assim, este filmão não impressiona. Não mexe com a plateia.
Depois do horror do Holocausto europeu, do impiedoso apartheid
sul-africano e do racismo contra afrodescendentes tanto no Velho como no
Novo Mundo, os preconceitos e a xenofobia voltaram incólumes e até mais
agressivos graças à potente combinação com o patriotismo. As vitórias e
o prestígio intelectual de Nelson Mandela e Barack Obama não
conseguiram esvaziar o rancor arcaico e selvagem da diferenciação entre
humanos.
Energúmenos são fabricados com incrível velocidade e isso não parece
impressionar as audiências. Acostumaram-se. Nesta exuberante América
Latina, utopias continuam destroçadas pelas distopias, libertários
transformam-se rapidamente em autoritários, ideologias redentoras do
século XIX já no século XXI estão transformadas em manuais de opressão. A
suposta Era da Informação e da Transparência produziu mecanismos
insuperáveis de desinformação e impunidade. As indústrias do roubo e do
crime organizado não produzem estatísticas, não entram no PIB, caso
contrário bateríamos a China. Corrupção é assunto batido,
multipartidário, universal, todos a praticam, não existe decência – isso
talvez explique o desinteresse pelas inumeráveis sequências de assalto
ao erário.
Importar-se dá câncer
Com tanta palpitação, suspense, variedade, tantas cenas de amor e
desamor este filme não empolga. Ou empolga apenas um bando de idosos
exigentes. Nas plateias, as pessoas ruminam barricas de pipocas e
mantêm-se abúlicas. Adoram ir levando, faz bem à alma.
Estas insignificâncias conseguiram emergir no noticiário dos últimos
dias: o presidente da OAB meteu a mão em dinheiro que não lhe era devido
enquanto defende os advogados como agentes da Justiça e um juiz manda
apreender carros de luxo de um réu-milionário e sai pilotando um deles
para exibir o poder da justiça.
O filme que está passando nas telas deveria espantar, sacudir,
incomodar ou revoltar. Hoje em dia nada surpreende, angustia, aflige ou
atormenta. Importar-se dá câncer. Serenados por um contagiante déjà vu
pairamos em estado de graça. Ao nível do mar, sem incensos, alcançamos o
nirvana e uma beatitude só possíveis em longas meditações nas montanhas
perto dos céus.
Algo misterioso, insólito, deve estar ocorrendo na cabine de projeção.
Trocaram o filme? Então parem as máquinas, esta superprodução não foi
feita para passar despercebida. Cortem mais algumas cabeças na equipe
para que os sobreviventes tornem-se mais criativos e façam deste longa o
espelho do nosso tempo. Será um sucesso.