Em 1978 o senador pernambucano Marcos Freire apresentou o primeiro
projeto de anistia dos quase cinco mil cidadãos punidos pelo golpe
militar de 1964, abrindo um debate que levaria à adoção da medida no ano
seguinte. Ainda sob o regime de exceção, os militares “estavam contra e
ouriçados”. Achavam que não deviam nada, “pois não eram criminosos”. O
que fizeram foi defender a pátria “e se queríamos anistiá-los era porque
os considerávamos bandidos”.
O senador José Sarney, como vice-líder do governo, foi encarregado de
acalmar a reação contraditando Marcos Freire e os integrantes da
oposição, tarefa que procurou desempenhar com aplicação. No depoimento
que deu à sua biógrafa, Regina Echeverria, em 2011, jurou que ele e seus
colegas do partido do governo (Arena e depois PDS) “não sabíamos que
havia um grande grupo deles [militares] envolvidos com tortura, mas eles
sabiam”. E por isso não admitiam a revisão dos seus atos.
Passadas quase quatro décadas, a sociedade ainda tenta rever esse
passado brutal. Não apenas para considerar a verdade e fixá-la nos
registros históricos, mas também punir autores de crimes e reparar os
danos que causaram no exercício de delegação estatal de poder.
Felizmente luzes têm sido lançadas sobre os ambientes escuros da tortura
e dos torturadores. A documentação disponível já é vasta.
Mas há um componente importante do regime ditatorial que ainda
precisa dessa mesma atenção: as ASI e DSI, assessorias e divisões de
segurança e informação, que funcionavam encravadas na estrutura de
órgãos públicos. Seus integrantes não praticaram torturas físicas porque
não atuavam nos órgãos de repressão direta. Mas causaram males
aproximados ou equivalentes agindo nas sombras, utilizando e manipulando
informações para denegrir pessoas, arruinar carreiras ou perseguir
desafetos, com ou sem motivação real, em função do crime que era então
de lesa-pátria: a subversão.
Só não fizeram ainda pior porque algumas das suas sugestões,
recomendações e pedidos não foram atendidos na escala superior de
comando, inclusive nos órgãos militares. E até personagens tristes dessa
época foram menos radicais, extremados e sanguinários do que esses
burocratas do terror. Quase todos eles permanecem no anonimato. As
poucas referências públicas ao que eles fizeram mostra que qualquer
cidadão podia se tornar alvo da sua sanha, mesmo os inocentes de algum
suposto “crime político”.
O jornalista Sebastião Nery fornece informações úteis para devassar esses ambientes vis no seu último livro, Ninguém me contou Eu vi – De Getúlio a Dilma
(Geração Editorial, 2014, 527 páginas). Na maior parte, o livro
reproduz artigos já publicados. O mais interessante são as informações a
seu respeito nos vários órgãos de informação do governo (SNI, CIEN,
Cenimar, Cisa, Polícia Federal, Ministério da Justiça) que o jornalista
requereu ao Arquivo Nacional. Esses documentos abrem uma cunha na
monolítica muralha que protegia essas instituições da espionagem.
O demolidor Carlos Lacerda cunhou uma frase célebre sobre o mais
representativo dos órgãos do novo regime, o Serviço Nacional de
Informações, criado pelo general Golbery do Couto e Silva em 1965.
Lacerda disse que nas segundas-feiras SNI não trabalhava porque nesse
dia os grandes jornais não circulavam nessa época.
A revelação do conteúdo dos arquivos dá razão ao famoso “Corvo”
carioca. Muitos informes foram montados a partir de textos tornados
públicos pela imprensa ou deram forma a nada mais do que boatos e
fofocas, material que não chegava a ser checado e era de credibilidade
mínima ou nula, mesmo quando dotado de alguma verossimilhança. A
leviandade e a falta de senso profissional (para não falar no sentido de
dever de ofício) impulsionavam parte considerável dessa produção em
rede de intrigas.
Dois dos episódios que chegaram ao registro desses órgãos merecem
atenção. Durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici, em 1971,
o embaixador de Portugal, Manoel José Fragoso, foi ao Ministério das
Relações Exteriores e, através de protesto verbal (sem registrá-lo em
papel, portanto), exigiu do ministro Mário Gibson Barbosa que Sebastião
Nery fosse enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Alegou que artigo
escrito por Nery, criticando o colonialismo português, ofendera o chefe
de governo de nação estrangeira, crime previsto no artigo 21 da terrível
LSN e punível com pena de prisão por dois a seis anos.
A nota era curta e comentava uma declaração do primeiro-ministro de
Portugal, Marcelo Caetano, sucessor do ditador Antonio de Oliveira
Salazar, de que Portugal “jamais abandonará o controle sobre suas
colônias na África”. Nery observou: “Mussolini também disse que a Itália
jamais sairia da Abissínia. Mussolini acabou morto berrando de cabeça
para baixo em um posto de gasolina de Milão. Hitler também disse que a
Alemanha jamais sairia da Iugoslávia. Hitler acabou enterrado nos
jardins de Berlim. ‘Como um verme imundo’”.
Em caráter “confidencial-urgentíssimo”, a assessoria de informações
do ministro da justiça, o ex-integralista Alfredo Buzaid, classificou o
texto de Nery de “solerte ofensa ao chefe do governo português, capaz de
comprometer, caso não adotemos enérgicas medidas a respeito, nossas
relações com o governo amigo”. Solicitava ao ministro “o obséquio de
mandar examinar as medidas legais adequadas para sancionar essa
inaceitável e grosseira injúria, bem como evitar sua eventual
repetição”.
A Procuradoria Geral da Justiça Militar entendeu que o caso
“comportaria a abertura de um IPM”, Inquérito Policial Militar. O
delegado da Polícia Federal na então Guanabara apimentou a recomendação
lembrando que seus arquivos indicavam o jornalista “como elemento de
ideologia comunista”.
O Ministério do Exército acrescentou às informações a observação de
que a Tribuna da Imprensa, do lacerdista Hélio Fernandes, irmão de
Millôr Fernandes, “continua impune na sua ação desagregadora”,
confirmando a convicção dos órgãos de segurança de que “uma das grandes
preocupações do movimento comunista tem sido a infiltração de elementos
com militância partidária ou com ideias revolucionárias nos órgãos de
comunicação social”. Exemplo disso fora a apreensão de recorte do jornal
num “aparelho” da ALN (Aliança Libertadora Nacional, de Carlos
Marighela) em Niterói.
Consultado, porém, o Ministério do Exército se esquivou: argumentou
que a competência era da própria Polícia Federal e por isso não abriria o
IPM. A tarefa acabaria cumprida pelo promotor militar, a partir de
inquérito da PF.
Era a primeira vez, no Brasil, que alguém era pedida a punição de alguém pelo artigo 21 da LSN e a primeira vez, na história da imprensa mundial, que um jornalista era processado em seu próprio país a pedido de embaixador de um país estrangeiro, assinalou o jornal francês Le Monde. Mas, conforme o ministro Gibson Barbosa, era “procedimento normal dos órgãos competentes do governo brasileiro”. “Normal”, sim, mas em ditaduras.
Era a primeira vez, no Brasil, que alguém era pedida a punição de alguém pelo artigo 21 da LSN e a primeira vez, na história da imprensa mundial, que um jornalista era processado em seu próprio país a pedido de embaixador de um país estrangeiro, assinalou o jornal francês Le Monde. Mas, conforme o ministro Gibson Barbosa, era “procedimento normal dos órgãos competentes do governo brasileiro”. “Normal”, sim, mas em ditaduras.
Nery foi absolvido por unanimidade na 1ª Auditoria da Marinha, um ano
depois de iniciado o processo. Não por considerações de conteúdo legal
ou filosófico, mas em função de um detalhe técnico: o chefe de governo
não era o jurista (sim: jurista numa ditadura) Marcelo Caetano e sim
Américo Tomás, que não foi citado no processo. Logo, a inicial era
inepta. Não tinha serventia no mundo jurídico, mesmo aquele violentado
pelo regime militar.
Em 1978, seis anos depois da absolvição, novamente a Divisão de
Segurança e Informação do Ministério da Justiça levantava o tacape da
Lei de Segurança Nacional contra Nery. O motivo era outro texto dele na
Tribuna da Imprensa:
“Só os homens do Movimento de Março se negam a dar a anistia? Por quê?
Vão querer que todos nós, mais cedo do que eles pensam, sejamos
obrigados a pedir anistia para eles? Juízo faz bem e não dá
arrependimento”.
O chefe da DSI, que não assinou o ofício, considerou “inadmissível
que a tão preconizada ‘liberdade de imprensa’ sirva nmais aos interesses
escusos de comunistas tenazes que conspiram contra a estabilidade
política e social do que aos lídimos interesses nacionais. Ameaças,
chantagens, intimidações e afrontas são feitas, sem que medidas
saneadoras e punitivas sejam tomadas”.
Apesar do Torquemada, a assessoria direta do ministro recomendou o
arquivamento do pedido e foi atendida pelo terrível Armando Falcão.
Quem sente saudades da ditadura ou se empenha em provocar emulação nos quartéis devia pensar nessas histórias. Ditadura, nunca mais. Ao menos para a minha geração.