Por LINO BOCCHINI - Via Carta Capital -
O apelo é inspirado por Claudia Wonder, artista que nos deixou há quatro anos, em novembro de 2010. Mas todas agradecem.
No começo de 2010 fui recebido por Claudia Wonder em seu simpático apartamento no bairro paulistano dos Jardins para uma longa e agradável entrevista.
A multiartista não escapava do mesmo tipo de desinformação que rotula
como homens as mulheres transexuais. Um dos maiores ícones trans do
Brasil, Claudia morreria poucos meses depois, em 26 de novembro de 2010,
aos 55 anos, vítima de uma infecção.
Aquela conversa ficou gravada em minha cabeça.
Jornalistas são procurados por suas fontes após a publicação de uma
reportagem pelos mais variados motivos. Comigo não é diferente. Fui
procurado, em 2011, por uma artista plástica carioca citada em uma reportagem que fiz para a revista Trip especial
Diversidade Sexual – aquela famosa pela capa com dois surfistas se
beijando. Travesti, ela me agradeceu imensamente pelo fato de eu ter
usado o artigo feminino a cada vez que me referia a uma mulher
transexual, ela incluída. “Você não sabe como isso é importante para
nós”, enfatizou.
Essa conversa também me marcou e, desde então, estou “devendo” este texto.
Mulheres transexuais compõem o extrato da população que mais sofre
com o ódio e o preconceito da sociedade. Mais do que os negros, mais do
que os gays ou as lésbicas, mais do que os presidiários. São a Geni
máxima do mundo. Para o cidadão comum, mesmo um dependente químico de
crack que more na rua e pratique roubos para manter seu vício “merece”
mais respeito ou piedade. Muitos reconhecem o “craqueiro”, no fundo,
como uma vítima. A travesti não. Essa é uma “sem-vergonha”, e leva essa
vida “porque quer”.
Esse tipo de julgamento é deplorável, mas gostaria de me solidarizar com o leitor não militante.
Faço reportagens sobre o universo transexual desde a faculdade, e
mesmo assim não sou o melhor exemplo. Correto seria nem sequer usarmos a
palavra “travesti”, afinal estamos falando de mulheres. Num grau ainda
mais elevado de correção política, a divisão se dá entre homens e
mulheres cisgênero e trans. Sendo “cis”, as pessoas nascidas com um
corpo masculino ou feminino e que se reconhecem como tal. Pelo senso
comum um tanto preconceituoso, são os homens e mulheres “convencionais”.
E o artigo feminino com isso?
Só nos últimos anos comecei a usar exclusivamente o artigo feminino
para referir-me às mulheres trans. E faço aqui um mea culpa: várias
vezes oscilei entre o uso do artigo masculino e o feminino, como em uma
outra matéria para a revista Trip, da qual fui redator-chefe por 4 anos. Era um perfil de Andreia de Maio,
travesti mítica, ao mesmo tempo cafetina e mãezona das travestis da
região da rua Amaral Gurgel. Carismática, inteligente e poderosa,
Andreia, falecida em 2000, foi a última “xerife” desta tradicional área
de prostituição de travestis no centro de São Paulo.
Quando a conheci, nos meados dos anos 90, ela andava “menos arrumada”
que nos anos 70 ou 80, e seu rosto “descuidado” enganou minha
inexperiência. Acabei usando algumas vezes o artigo masculino no texto,
desconsiderando que Andreia, como toda travesti, “desarrumada” ou não,
nasceu e sempre foi Andreia.
Confesso que algumas vezes ainda me vejo obrigado a um pequeno esforço mental para evitar usar “o travesti”.
E termino convidando o leitor não militante para este exercício
simples e saudável de usar sempre o artigo feminino para elas. A cada
vez que você conseguir, terá pensado na questão trans por uma fração de
segundo. Já ajuda. E pode ter certeza de que elas agradecem.