Por BRUNO CAVA e HUGO ALBUQUERQUE - Via Le Monde Diplomatique Brasil -
No meio disso tudo, os 7 a 1 foram um erro de continuidade
incontornável, uma fratura na narrativa grandiosa do empreendimento da
Copa.
A CBF entrou em conluio com a Fifa. O Brasil entregou a semifinal para
a Alemanha, em troca do título olímpico de 2016, o único que a seleção
ainda não tem. Para reforçar a compensação, a Fifa garantiu o direito de
o Brasil sediar outra Copa até 2030. A contusão de Neymar não foi séria
e ele poderia ter jogado as partidas seguintes, mas seu afastamento do
time depois das quartas de final teve de ser arranjado, para dar mais
verossimilhança à marmelada do jogo seguinte.
Essa denúncia tornou-se viral dias depois dos 7 a 1, lembrando
imediatamente a carta que apareceu nas redes sociais após a final de
1998. Assinada por “Gunther Schweitzer”, supostamente diretor da Rede
Globo, a carta relatava a venda da Copa da França para a anfitriã. Na
ocasião, a seleção francesa derrotou a brasileira por 3 a 0, num complô
armado entre CBF, Fifa e a empresa patrocinadora, a Nike. Mais tarde,
foi apurado que a carta era apócrifa e que, embora exista mesmo um
Gunther Schweitzer, na realidade ele é personal trainer em Mogi das
Cruzes. Aparentemente, catástrofes nacionais de grandes proporções
costumam fertilizar o solo para as teorias da conspiração, inclusive no
futebol. Na Copa de 1998, elas tiveram repercussões reais: o caso chegou
a ser discutido na CPI da CBF/Nike e Ronaldo foi convocado a explicar a
suposta convulsão antes da partida.
Em O tempo que resta, Giorgio Agamben explica que
rumores, entreouvidos e fofocas têm um estatuto discursivo próprio, que
não depende da adequação aos fatos. Diante de uma boa fofoca, não
estaríamos tão preocupados com sua veracidade, e sim com os sentidos
pregnantes que ela carrega, na articulação de suspeitas, de um fundo de
não dito insistente que se esgueira na conversação – ainda que a
história, a rigor, seja totalmente falsa. É certo que não rolou mala
preta para a seleção entregar o jogo à Alemanha.
Em tempos de neoliberalismo, ninguém duvidaria que a paixão pelo
futebol não se tornasse objeto privilegiado para a comodificação, a
gestão de marcas e esquemas elitizados e privatistas de controle dos
clubes e seleções. Ao lado do encantamento do futebol, existe uma
complexa economia política baseada no marketing e na negociação de
valores milionários entre os grandes playersdo futebol
empresarial. A compra e a venda, na verdade, ocorrem o tempo todo e o
negócio está em todo lugar, embora não saibamos exatamente como
acontece. O resultado dessa convivência é um mal-estar, na maioria do
tempo mantido sob controle, mais ou menos disfarçado, mas que pode
extravasar em momentos críticos – como no fracasso numa Copa.
No entanto, se o mundo do ócio criativo é a morada do futebol, nas
últimas décadas a prevalência do negócio se impôs. Jogando bonito ou
feio, com fantasia ou tédio, a meta do futebol-negócio é que, no final
do campeonato, o dinheiro gere mais dinheiro e o valor de troca possa
ultimar seu ciclo deixando o investidor feliz. E não adianta apenas
reagir nostalgicamente, atrás do elo perdido do futebol brasileiro.
Desde pelo menos a Copa de 1990, a crítica futebolística tem adotado a
dicotomia entre futebol-arte e futebol-força. Os dois, no entanto, são
faces da mesma moeda em circulação. A força frequentemente deve parar a
derrota geradora de dívida. A situação financeira requer retrancas
teimosas e muitos volantes, para guarnecer o investimento. A longo
prazo, porém, não é possível sobreviver num mercado competitivo sem
capitalizar a imagem, mediante narrativas com heróis, vilões e viradas
emocionantes. É quando a arte precisa ser reconvocada como artifício
saudável ao capital em jogo. Durante muito tempo, “jogo bonito” foi o
slogan da Nike. Não confundir com aquele encantamento tão raro de um
Garrincha, que nada tinha de calculado ou previsível, quase gratuito em
sua bela elasticidade. Beleza hoje geralmente significa cosmética, feita
sob encomenda para o slow motion dos videoclipes e os anúncios do patrocinador.
Felipão tinha essa dicotomia na cabeça antes de escalar o time contra a
Alemanha. Como substituir Neymar? Escalar outro meia-atacante, como
Bernard ou Willian, ou colocar mais um volante? No fim, ele optou pelo
“ataque”. Isso atrapalhou a crítica futebolística, que teve de revisar
os editoriais já prontos, que explicariam qualquer fracasso usando a
famosa teima retranqueira do treinador.
A seleção de 1982, gravada nos mitos como façanha irrecuperável de
quando se “jogava bonito”, era realmente diferente. Era diferente menos
pela mitificada “ofensividade” do que por um jeito próprio, comum àquela
época. Situadas no entretempo de uma ditadura que pôs o futebol para
funcionar como aparelho de Estado (via Cláudio Coutinho e a preparação
física “moderna”) e do futebol-negócio dos anos 1990, as seleções de
1982 e 1986 repercutiram o horizonte alargado da infância da
redemocratização. Uma época de renovação de lutas e movimentos sociais,
cujo otimismo se apresentou num futebol capaz de proezas além da
imaginação. Foi o futebol da democracia corintiana do Dr. Sócrates, da
habilidade solta e feliz de um Zico, do gênio da técnica Telê Santana.
Hoje, não faltam atacantes nos muitos times que seguem o 4-2-3-1
hegemônico, mas eles desde cedo são convertidos em garotos-propaganda em
tempo integral, deixando o campo de lado. Foi assim que perdemos uma
geração inteira de centroavantes e pontas de lança.
O erro maior ao restringir o fiasco do futebol e da seleção aos termos
do fetichismo tático é que um José Maria Marin, o presidente da CBF e
ex-burocrata da ditadura militar, bem como a corte de cartolas,
empresários, lobistas e protegidos podem passar despercebidos. No
entanto, não dá para passar despercebido que a compra e a venda são
diárias e a “mala preta” está diluída no funcionamento normal do
futebol.
As seleções do Brasil dos anos 1980 corporificaram um estado de
espírito e a dignidade de uma época. Em 2014, porém, o maior ato de
rebeldia em campo foi um atacante que baixava o calção para fazer
propaganda de cueca. Os protestos de rua ao longo da Copa, apesar de
pequenos e dispersos, foram importantes ao expor as vísceras de
instituições surdamente autoritárias. E as vaias à presidente, se pouco
representativas perante o povão, tiveram o mérito pelo menos de gritar
uma contradição de seu governo: construir estádios para um específico
segmento social poder vaiá-la.
No meio disso tudo, os 7 a 1 foram um erro de continuidade
incontornável, uma fratura na narrativa grandiosa do empreendimento da
Copa. A profusão de teorias conspiratórias – essas expressões
folclóricas do “inconsciente coletivo” – é, pois, um sintoma da ferida
aberta. Os murmúrios, as teorias de bar e os boatos circulando
freneticamente pelas redes e ruas dão apenas uma imagem da verdade –
mas, a partir dela, da indignação e dos desejos que exprime, podemos
começar a juntar os cacos para uma verdade histórica libertadora. Até a
Copa de 2018, na Rússia, quem sabe, possamos impedir que continuem
vendendo o nosso futebol.