4.9.14

COMO O BRASIL VENDEU A COPA

Por BRUNO CAVA e HUGO ALBUQUERQUE - Via Le Monde Diplomatique Brasil -

No meio disso tudo, os 7 a 1 foram um erro de continuidade incontornável, uma fratura na narrativa grandiosa do empreendimento da Copa. 

A CBF entrou em conluio com a Fifa. O Brasil entregou a semifinal para a Alemanha, em troca do título olímpico de 2016, o único que a seleção ainda não tem. Para reforçar a compensação, a Fifa garantiu o direito de o Brasil sediar outra Copa até 2030. A contusão de Neymar não foi séria e ele poderia ter jogado as partidas seguintes, mas seu afastamento do time depois das quartas de final teve de ser arranjado, para dar mais verossimilhança à marmelada do jogo seguinte.

Essa denúncia tornou-se viral dias depois dos 7 a 1, lembrando imediatamente a carta que apareceu nas redes sociais após a final de 1998. Assinada por “Gunther Schweitzer”, supostamente diretor da Rede Globo, a carta relatava a venda da Copa da França para a anfitriã. Na ocasião, a seleção francesa derrotou a brasileira por 3 a 0, num complô armado entre CBF, Fifa e a empresa patrocinadora, a Nike. Mais tarde, foi apurado que a carta era apócrifa e que, embora exista mesmo um Gunther Schweitzer, na realidade ele é personal trainer em Mogi das Cruzes. Aparentemente, catástrofes nacionais de grandes proporções costumam fertilizar o solo para as teorias da conspiração, inclusive no futebol. Na Copa de 1998, elas tiveram repercussões reais: o caso chegou a ser discutido na CPI da CBF/Nike e Ronaldo foi convocado a explicar a suposta convulsão antes da partida.

Em O tempo que resta, Giorgio Agamben explica que rumores, entreouvidos e fofocas têm um estatuto discursivo próprio, que não depende da adequação aos fatos. Diante de uma boa fofoca, não estaríamos tão preocupados com sua veracidade, e sim com os sentidos pregnantes que ela carrega, na articulação de suspeitas, de um fundo de não dito insistente que se esgueira na conversação – ainda que a história, a rigor, seja totalmente falsa. É certo que não rolou mala preta para a seleção entregar o jogo à Alemanha.
Em tempos de neoliberalismo, ninguém duvidaria que a paixão pelo futebol não se tornasse objeto privilegiado para a comodificação, a gestão de marcas e esquemas elitizados e privatistas de controle dos clubes e seleções. Ao lado do encantamento do futebol, existe uma complexa economia política baseada no marketing e na negociação de valores milionários entre os grandes playersdo futebol empresarial. A compra e a venda, na verdade, ocorrem o tempo todo e o negócio está em todo lugar, embora não saibamos exatamente como acontece. O resultado dessa convivência é um mal-estar, na maioria do tempo mantido sob controle, mais ou menos disfarçado, mas que pode extravasar em momentos críticos – como no fracasso numa Copa.

No entanto, se o mundo do ócio criativo é a morada do futebol, nas últimas décadas a prevalência do negócio se impôs. Jogando bonito ou feio, com fantasia ou tédio, a meta do futebol-negócio é que, no final do campeonato, o dinheiro gere mais dinheiro e o valor de troca possa ultimar seu ciclo deixando o investidor feliz. E não adianta apenas reagir nostalgicamente, atrás do elo perdido do futebol brasileiro.

Desde pelo menos a Copa de 1990, a crítica futebolística tem adotado a dicotomia entre futebol-arte e futebol-força. Os dois, no entanto, são faces da mesma moeda em circulação. A força frequentemente deve parar a derrota geradora de dívida. A situação financeira requer retrancas teimosas e muitos volantes, para guarnecer o investimento. A longo prazo, porém, não é possível sobreviver num mercado competitivo sem capitalizar a imagem, mediante narrativas com heróis, vilões e viradas emocionantes. É quando a arte precisa ser reconvocada como artifício saudável ao capital em jogo. Durante muito tempo, “jogo bonito” foi o slogan da Nike. Não confundir com aquele encantamento tão raro de um Garrincha, que nada tinha de calculado ou previsível, quase gratuito em sua bela elasticidade. Beleza hoje geralmente significa cosmética, feita sob encomenda para o slow motion dos videoclipes e os anúncios do patrocinador.

Felipão tinha essa dicotomia na cabeça antes de escalar o time contra a Alemanha. Como substituir Neymar? Escalar outro meia-atacante, como Bernard ou Willian, ou colocar mais um volante? No fim, ele optou pelo “ataque”. Isso atrapalhou a crítica futebolística, que teve de revisar os editoriais já prontos, que explicariam qualquer fracasso usando a famosa teima retranqueira do treinador.

A seleção de 1982, gravada nos mitos como façanha irrecuperável de quando se “jogava bonito”, era realmente diferente. Era diferente menos pela mitificada “ofensividade” do que por um jeito próprio, comum àquela época. Situadas no entretempo de uma ditadura que pôs o futebol para funcionar como aparelho de Estado (via Cláudio Coutinho e a preparação física “moderna”) e do futebol-negócio dos anos 1990, as seleções de 1982 e 1986 repercutiram o horizonte alargado da infância da redemocratização. Uma época de renovação de lutas e movimentos sociais, cujo otimismo se apresentou num futebol capaz de proezas além da imaginação. Foi o futebol da democracia corintiana do Dr. Sócrates, da habilidade solta e feliz de um Zico, do gênio da técnica Telê Santana.

Hoje, não faltam atacantes nos muitos times que seguem o 4-2-3-1 hegemônico, mas eles desde cedo são convertidos em garotos-propaganda em tempo integral, deixando o campo de lado. Foi assim que perdemos uma geração inteira de centroavantes e pontas de lança.

O erro maior ao restringir o fiasco do futebol e da seleção aos termos do fetichismo tático é que um José Maria Marin, o presidente da CBF e ex-burocrata da ditadura militar, bem como a corte de cartolas, empresários, lobistas e protegidos podem passar despercebidos. No entanto, não dá para passar despercebido que a compra e a venda são diárias e a “mala preta” está diluída no funcionamento normal do futebol.

As seleções do Brasil dos anos 1980 corporificaram um estado de espírito e a dignidade de uma época. Em 2014, porém, o maior ato de rebeldia em campo foi um atacante que baixava o calção para fazer propaganda de cueca. Os protestos de rua ao longo da Copa, apesar de pequenos e dispersos, foram importantes ao expor as vísceras de instituições surdamente autoritárias. E as vaias à presidente, se pouco representativas perante o povão, tiveram o mérito pelo menos de gritar uma contradição de seu governo: construir estádios para um específico segmento social poder vaiá-la.

No meio disso tudo, os 7 a 1 foram um erro de continuidade incontornável, uma fratura na narrativa grandiosa do empreendimento da Copa. A profusão de teorias conspiratórias – essas expressões folclóricas do “inconsciente coletivo” – é, pois, um sintoma da ferida aberta. Os murmúrios, as teorias de bar e os boatos circulando freneticamente pelas redes e ruas dão apenas uma imagem da verdade – mas, a partir dela, da indignação e dos desejos que exprime, podemos começar a juntar os cacos para uma verdade histórica libertadora. Até a Copa de 2018, na Rússia, quem sabe, possamos impedir que continuem vendendo o nosso futebol.