JOSÉ CARLOS DE ASSIS -
No frontispício de “A Política”, Platão questiona se foi um homem ou um deus aquele que fez as leis da cidade. Se perguntássemos a mesma coisa em relação ao Brasil, não diríamos que foi um deus, mas, sim, que foi certamente o diabo, pois nenhum homem seria capaz de, sozinho, elaborar uma legislação tão pérfida como nossa legislação eleitoral. Ela foi feita com o propósito único de manter eternamente no poder algumas pessoas e famílias, o que exigia o concurso de não apenas um homem mas de legiões de oportunistas.
Como é possível que um parlamentar tão desqualificado, tão próximo de beneficiários de corrupção, tão indiferente ao interesse público como Picciani apareça nas pesquisas eleitorais como o quarto candidato a deputado federal mais votado? O que passa pela cabeça de pessoas honestas, como provavelmente são a maioria de seus eleitores, ao dar suporte a um político tão questionado? Obviamente não é dinheiro. É certo que ele tem muito, juntando os caixas da família, mas não é possível com ele comprar todos os adeptos.
Esse fenômeno se explica por duas razões. Primeiro, pela eficácia das redes de simpatia familiar e de amizade que resultam em pirâmides ou correntes políticas. A mais importante, porém, é o sistema de clientela que ainda vigora no país, amarrando o eleitorado num carrossel de pequenos favores que se servem das estruturas públicas de saúde e de educação, transformadas em negócios privados. Para os pobres e muito pobres, ter um amigo deputado, ou próximo dele, pode significar a vida ou a morte.
Infelizmente isso não tem solução simples. Como convencer um doente ou um parente de doente a votar pelo interesse público geral, quando seu interesse particular está em jogo num hospital onde impera a clientela de um deputado? Essa situação só será mudada quando os grandes sistemas de serviços públicos se tornarem tão bons e eficientes que dispensarão os favores individuais. Até lá, só existe um remédio: a conscientização política do eleitor que lhe permita, sem remorso, trair seu suposto “protetor” na cabine eleitoral.
Picciani é o parlamentar que apresenta ao eleitorado o mais deprimente currículo. Está à altura da família. Já a família Cunha tem um elemento a mais no festival sórdido de manipulação da opinião pública, misturando no caldeirão político elementos de uma religião movida não a piedade, mas a dinheiro. Lembre-se do cheque de 100 mil reais de Cunha, encontrado com o “bispo” Malafaia. Seria uma dádiva inocente? Não fosse a isenção fiscal que, a meu juízo injustificadamente, se dá a templos religiosos mesmo suspeitos, Malafaia teria destino carcerário igual ao de Cunha, e a ausência de ambos limparia a política do Rio.