ADERSON BUSSINGER -
Participei da recente manifestação de apoio e desagravo
em favor da Advogada negra Dra. Valeria dos Santos (foto), em frente ao Fórum da
Justiça Estadual da Comarca de Duque de Caxias e, naquele dia, quero registrar
que fiquei horrorizado quando, no inicio do evento, a direção do fórum ordenou
que se fechassem as portas principais daquele órgão de Justiça, o que, ato
contínuo, foi executado pela segurança do prédio, de maneira constrangedora e
mesmo deseducada para com os advogados e advogadas que participavam da
manifestação, além de populares presentes. Este fato, além da indisfarçada
provocação-, que deixou todos e todas perplexos, tratou-se de um claro e
evidente sinal de autoritarismo judicial, prepotência e ainda revelou o
seguinte aviso e prenuncio: a vítima será condenada!
Ontem, 26 de setembro de 2018, o que era um sinal foi
infelizmente confirmado, pois a Juíza Leiga que determinou que a Polícia
Militar algemasse a advogada foi considerada inocente pelo órgão da Comissão
Judiciária de Articulação dos Juizados Especiais do Rio de Janeiro (Cajes), que
embora seja ainda uma instancia inferior, já demonstra através deste veredicto,
contudo, que em termos politico-institucional a cúpula do TJ do Estado do Rio
de Janeiro está endossando e ainda protegendo a referida Agente do Estado que
praticou aquela barbaridade de mandar retirar da sala de audiências e algemar
uma mulher desarmada, que, enquanto advogada, tão somente buscava exercer sua
atividade profissional, sendo surpreendida, porém, com a cruel realidade de que
quando se é negro ou negra neste país, - principalmente em órgãos estatais - o tratamento
é diferenciado e traz ainda o grilhões das senzalas, que, no seu caso, se
materializaram em algemas de aço.
Acrescente-se ainda que, tal como o relatório da
malsinada Decisão, assinado por um Desembargador, é no seu mérito totalmente
injusto e mesmo desumano, cumpre também dizer que o processo de apuração dos
fatos que deu origem a esta conclusão está sob absoluta suspeição, pois –
pasmem! – foi realizado sem a participação da OAB, a qual foi recusado acompanhar
a oitiva da juíza e também das testemunhas convocadas, em afronta aos mais
comezinhos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, ou
seja, formalizo-se um processo que pode ser considerado tudo, menos isento!
Para se ter uma ideia do disparate, segundo o mencionado documento, não houve
excesso nas algemas; não houve abuso de autoridade ou mesmo desvio de
finalidade na atuação da juíza leiga e muito menos qualquer atitude racista.
Não houve incrivelmente vítima... Enfim o relatório apontou que não aconteceu
nada que pudesse servir de base para condenação da juíza, mas, ao contrário,
houve, sim, a necessidade de aplicação das algemas, pois, em resumo, concluiu-se
que, naquela circunstancia, a Dra Valéria poderia agredir a juíza... Sem mais
comentários!
A Comissão de Prerrogativas da OAB-RJ que desde o
primeiro momento saiu em defesa da Advogada, expediu nota oficial criticando a decisão,
considerada lamentável por nossa Seccional, e promete recorrer perante a
Corregedoria de Justiça do TJ, assim como, caso não tenha êxito nesta esfera, recorrer
ao Conselho Nacional de Justiça, o que certamente será feito, pois é unanime o apoio
da Advocacia á colega algemada. O fato,
entretanto, a meu ver, transcende a própria advocacia e a OAB, pois sigo crendo,
desde o inicio, que se tratou de uma prática racista, de cunho estrutural, que
embora tenha se personificado na juíza leiga e no policial militar que impôs as
algemas, este fato tem por detrás toda uma complexa e efetiva estrutura de juízes
togados, titulares de juizados, assim como a alta hierarquia administrativa e
judicial do Tribunal de Justiça, que acabam por expressar, consciente ou
inconscientemente, no cotidiano das relações judiciais aquilo que pode ser denominado
de racismo institucional e profundamente arraigado, o qual infelizmente se
reproduz há séculos.
Sim, salvo honrosas exceções de magistrados e magistradas
que não concordam e são críticos em relação à estrutura do judiciário
brasileiro, este episódio desnuda que o mesmo racismo que existe em todos os
quadrantes da sociedade está presente também na “Casa da Justiça”, onde é
diminuta, quase rara, a quantidade de juízes negros e onde, como neste recente
caso, alguns consideram normal algemar uma advogada que apenas trabalhava no
interior de uma sala de audiências. Não
tenho a intenção de invadir o âmbito do pensamento e sentimentos de cada juiz
ou juíza, funcionário ou funcionaria do judiciário, - os quais respeito - mas
não posso me furtar de afirmar é realmente um horror saber o que aconteceu com
a Dra. Valeria e, agora, tomar conhecimento também que de vitima passou a ser considerada
“violenta”, um perigo para a Juíza leiga que lhe agrediu e, via de consequência,
um perigo para o próprio judiciário, motivo pelo qual algemada... Nesta linha
de absurdos e horrores, o próximo passo deverá ser a obrigação de indenizar
quem lhe algemou e lhe atirou ao chão! Não duvidem disto!
Por fim, retornando ao dia da manifestação em frente ao
fórum de Duque de Caxias, encerro este texto, em forma também de desabafo, chamando
a reflexão para o fato de que o “fechar as portas do prédio do fórum” que todos
nós que estávamos naquele dia chuvoso presenciamos, (até incrédulos no que
assistimos), foi na verdade não somente um aviso para Dra. Valeria dos Santos, mas
um recado bem claro para a advocacia e toda sociedade no sentido de que o Poder
judiciário brasileiro apenas formalmente é público e aberto á sociedade, e
ainda mais, concluo: está igualmente contaminado pelo racismo, para o qual
fechou os olhos com esta decisão, como, ademais, todos nós somos reflexos de mais
de 300 anos de escravidão legal no país. O problema está quando não se tem
consciência deste crime e - pior ainda! - Sentenças o convalidam. Todo apoio a respeito
a Dra. Valeria dos Santos, pois a luta continua!
* Aderson Bussinger, Advogado Sindical, Conselheiro da OAB-RJ. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais/UFF, colaborador do site TRIBUNA DA IMPRENSA SINDICAL, Diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ, membro Efetivo da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ. Membro Efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros-IAB.