28.2.18

DO BICHO À MÁFIA - PARTE 15

REDAÇÃO -

Extraído do livro “Os porões da contravenção – Jogo do bicho e ditadura militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado”, de Aloy Jupiara e Chico Otávio.


Diferente de Cazuza, que não via sentido em viver sem ideologia, os bicheiros não tinham qualquer preocupação com relação a esse assunto: repudiavam ideologias. Segundo Castor: “A contravenção tem um princípio. Ela é governo e não tem culpa que o governo mude a toda hora.” Seja democracia, seja ditadura, seja conservador, seja progressista o que importa aos contraventores é ser amigo, aliado, achar um modus vivendi comum, cômodo para todas as partes.

Mas a ambição não se restringia ao domínio da contravenção. A criação da Liesa equivaleu a uma conquista armada. Privatizaram a celebração popular e a repartiram entre comparsas: o primeiro presidente foi Castor; o segundo foi Anísio; por fim, Capitão Guimarães fechou a trilogia.

A Liesa surgiu quando as 10 maiores Escolas de Samba, lideradas pelos “irmãos metralha”, anunciaram seu desligamento da Associação das Escolas de Samba, tradicional representante das Escolas.

A ideia de um Liga Independente seduziu a todos com promessas econômicas relacionadas com direitos de transmissão, de comercialização da marca, até então controlados pela Riotur. Com a Liesa, a negociação com o poder público ocorreria sem intermediários. A conseqüência mais importante foi o alijamento de 34 agremiações menores e sem recursos da contravenção. Até os sambistas mais tradicionais ficaram afastados das decisões referentes à festa que eles mesmos criaram.

Com a melhoria da imagem junto ao público, os bicheiros passaram a se apresentar como empresários e desejavam levar profissionalismo para a arena do samba. Foi com esse “enredo” que manipularam a criação de uma liga independente.

Na política nacional, 1984 foi um ano de indefinições e causou muitas preocupações. Afinal, foi o ano em que a emenda constitucional das Diretas Já foi rejeitada pelo Congresso. O apoio a Tancredo tomava proporções alarmantes para o governo que se despedia. O PDS, antiga Arena, racharia diante do apoio a Paulo Maluf nas eleições presidenciais seguintes – pelo mecanismo indireto, haja vista a rejeição à emenda.

Após a redemocratização, uma proposta de legalização do jogo do bicho foi enviada ao Ministério da Justiça por secretários estaduais de segurança, em 1983 – exceto o do Espírito Santo. Mas o governo Figueiredo não a levou adiante.

Um relatório do SNI denominado “Análise sobre os prós e contras referentes à regulamentação de jogos de azar no Brasil” defendia que a regulamentação era “necessária e urgente, como um meio de tornar lícito aquilo que existe e sobrevive ao arrepio da lei.”

Segundo o SNI, a ilegalidade “estimula a corrupção, incentiva o crime e proporcionam a uma minoria, lucros fabulosos (enriquecimento ilícito)”. O documento elenca 9 argumentos pró-legalização e apenas 3 contra.

“Reconhecer, por lei, essa situação é apenas sancionar o que de fato já é uma vibrante e evidente realidade, pois se o mal existe e se é tolerado, embora ilegal, é preferível legalizá-lo a permitir sua propalação, com visível afronta à ordem legal.”

Alerta também o documento para o desgaste da imagem da Administração Pública e do Poder Judiciário, após as freqüentes denúncias de envolvimento delas com os bicheiros.

Quanto aos impactos decorrentes da extinção dessas atividades, o documento trata também dos impactos sociais negativos sobre as pessoas mais humildes, que vêem no bicho e nos cassinos clandestinos um meio de sustento, com ganhos bastante razoáveis. Trata também do mercado artístico, com a criação de postos de trabalho para cantores, músicos, atores etc.

Em 1988, a emenda que legalizava os cassinos teve 271 votos a favor e 118 contra. Eram necessários 280 votos para sua aprovação. A emenda referente ao jogo do bicho foi rejeitada por 208 votos.

Na eleição estadual para governador em 1986, os bicheiros apoiaram o antropólogo Darcy Ribeiro, do PDT. O bicho já desembarcara dos antigos donos do poder.

Foi desconcertante para Darcy participar de um almoço, numa churrascaria, ao lado de Capitão Guimarães, Anísio, Miro, Maninho, Turcão, Manola, e outros. O homem que fora inimigo do regime militar e obrigado a se exilar no exterior, agora buscava apoio junto a ex-torturadores e contraventores que apoiavam os ditadores.

Nas palavras de Guimarães: “Brizola deu a maior tranqüilidade de todos os tempos ao jogo do bicho e nunca nos pediu dinheiro por isso. Agora chegou a hora de retribuir e eleger Darcy Ribeiro governador, além de votar em Marcello Alencar e Frejat para o Senado.”, continuou. Frejat era advogado e pai do vocalista do Barão Vermelho.

Porém, nova reviravolta. Agora a vitória foi de Moreira Franco.

Ao final de seu mandato, Moreira mostraria novamente o poder dos bicheiros no estado. Em fevereiro de 1991, Moreira recebeu Capitão Guimarães, Anísio, Luizinho Drumond e Carlinhos Maracanã no Salão Verde do Palácio Guanabara. A cerimônia era para o anúncio da doação de um terreno para o Museu do Samba. O escândalo teve as mesmas proporções do almoço oferecido a Darcy, 4 anos antes.

Moreira se defendeu: “Fiz isso para causar uma discussão, rasgar uma hipocrisia.” Completou dizendo que aquele evento era equivalente à condecoração dada pela Rainha Elizabeth aos Beatles.

Em 21 de maio de 1993, a juíza Denise Frossard condenou a cúpula do bicho a seis anos de prisão por formação de quadrilha armada. Foram atribuídos a eles 53 homicídios – e um segurança armado foi preso nas imediações do Fórum.

Mas as atividades criminosas continuaram no mesmo compasso. As quadrilhas continuavam operando a partir de dentro da cadeia – além dos comparsas de fora dos muros.

Outra descoberta, um pouco mais recente, foi a existência de um Tribunal próprio:  Clube Barão de Drummond. É a Corte Superior do jogo do bicho: arbitra disputas, decide sobre bens, heranças etc. E, claro, elimina quem desrespeita suas decisões.

Sua jurisdição vale para todo o país, deixando os limites restritos do estado do Rio de Janeiro.

Em 13 de março de 2012, os bicheiros retornaram à cadeia. Agora, no âmbito da Operação Furacão. A juíza agora era Ana Paula Vieira de Carvalho. Cada um foi condenado a mais de 48 anos de cadeia. Os crimes agora são corrupção ativa e formação de quadrilha. Dos 23 condenados, 10 tiveram prisão decretada. Como alguns bicheiros já haviam falecido, seus familiares herdeiros das atividades criminosas ocuparam o banco dos réus.

Em maio, o Ministro do STF Marco Aurélio de Mello determinou a soltura dos presos, acatando o argumento da defesa, de que decisão do STF datada de 2007 determinava a prisão apenas após o trânsito em julgado.

As sentenças continuaram emitindo novas condenações contra os bicheiros, mas a decisão do STF os manteve respondendo em liberdade.

Para completar o quadro digno das máfias mais poderosas do mundo, a revelação do escândalo Swissleaks apontou a existência de uma conta no HSBC da Suíça em nome do Capitão Guimarães, em março de 2015.