EDUARDO BANKS -
Por estes dias, enquanto tentava ainda concatenar as idéias para o presente trabalho, dei-me conta de que os ingleses tisnaram todas as três raças humanas com a sua visão de “exotismo”: os africanos (negros), os hindus (arianos) e os chineses (asiáticos), foram, cada um de uma forma diferente, explorados por esse Império onde o Sol se não punha, tanto no plano geopolítico, quanto na literatura. Nesta última, sempre como personagens que se opõem aos “bons” europeus, ou que se lhes oferecem como dóceis criados. Assim, a Negritude é parte integrante de algo muito maior, a que chamamos de “Humanitude”, visto que toda a Humanidade foi atingida, de algum modo, pela trágica experiência do colonialismo, e ainda hoje tenta se recuperar das feridas deixadas pela tantas vezes celebrada artilharia inglesa. Os negros apenas foram os primeiros a se levantar em protesto; faltam ainda os hindus, os chineses, e muitos outros, a fazer a crítica do que os colonizadores lhes impingiram, e a auto-crítica do que terminaram aceitando incorporar nesse processo, e que destinação dar aos “presentes” que os europeus deixaram em suas praias antes de (fingir) partir.
Por exemplo, Léopold Sédar Senghor, poeta e político senegalês, é criticado por sua própria francofonia, que seria algo “incompatível” com a cultura africana. De fato, ao ouvir o seu magnífico poema sobre a mulher negra, mãe africana e da espécie humana, senti uma verdadeira comoção, mas devido ao experimento que o nobre professor fizera com a classe em sala de aula (de ler o poema sem dizer o nome do autor, e depois perguntar aos alunos se pensavam ser obra de um africano ou de algum falante de língua européia), eu sinceramente cogitei tratar-se de poema escrito por um branco europeu, embora favorável à causa dos africanos. Evidente que muitas das críticas a Senghor têm origens em políticas locais mais imediatistas: comumente se vê um homem de letras ter que assumir posições discordantes, quando no poder, das que pregava em sua obra literária anterior a assumir u’a magistratura suprema, e Senghor não foi exceção; mas a sua obra escrita tem seu lastro na sua própria biografia (que perspassou quase todo o Século XX, chamado de “Século de Senghor” pelos seus fâmulos), e no final, ela ainda consegue aglutinar os dois Senghor em uma figura coesa. No Brasil, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso passou por uma experiência semelhante ao se tornar Presidente da República, e ali ele reagiu dizendo aos críticos para que se esquecessem da sua obra pretérita, o que não nos parece ser a melhor resposta, nem para julgar a sua obra como sociólogo, nem para dizer do seu legado como político.
A literatura inglesa, com seus Kipling, seus Conan Doyle, e seus êmulos de outras partes como Salgari, fizeram dos chineses, dos hindus e dos africanos a presença exótica e misteriosa das aventuras impossíveis de seus “heróis” colonialistas.
A Negritude, para vencer os ingleses nesse seu terreno, precisaria dar, literariamente, algo que desbancasse Allan Quatermain, Sherlock Holmes e Sandokan. Algo que modificasse esse retrato exótico de toda a Humanidade, e não somente dos “negros”, criado pela literatura de aventuras do Século XIX, que tinha por finalidade política servir como um “agente” propagandístico das “virtudes” e da “superioridade” dos ingleses. A sutileza britânica, neste ponto nada superficial, com o que pedimos vênia a Nietzsche, pois neste ponto os ingleses demonstraram bastante espírito (embora Nietzsche esteja certo também nisso, quanto à inexaurível capacidade mimética do espírito inglês), foi que ao invés de retratar os negros, hindus e chineses como bárbaros incivilizados de forma indiscriminada (como faria umaliteratura supremacista escrita por membros da Ku-Klux-Klan), os escritores ingleses (mesmo os que não tinham comprometimentos com a “agenda” colonial, visto que o ar do ambiente literário estava impregnado) estereotipavam os povos conquistados como “pitorescos” e portanto, dignos de serem dados como espetáculo pronto a entreter à curiosidade do basbaque. Isto bastava a mostrar o quanto os britânicos eram “melhores”, visto que detinham uma cultura tida como “superior”. Os chineses, hindus e negros “bons”, como dito, são mostrados como colaboradores dos colonizadores, qual o gigante negro Lothar dos quadrinhos, que faz as vezes de Robin para o Fantasma, e ao menos nesse aspecto do colonizador sobre o colonizado, termina por sofrer algo semelhante aos abusos de que o Batman é acusado de cometer contra o seu jovem parceiro.
Os principais conceitos da Negritude trabalhados por Aimé Cesaire, Léopold Senghor e Franz Fanon são visitados no filme “As Estátuas Também Morrem” (1953, acesso no link https://www.youtube.com/watch?v=uXLOGK-xzBE&t=101s), onde Alioune Diop, realizador da película e organizador do I.º Congresso de Escritores Negros, em Paris (1956), discorre sobre a morte do sagrado das imagens (as “estátuas”) da cultura africana, quando são retiradas das mãos das populações que as conceberam para serem levadas a museus da Europa e da América. As estátuas “morrem” quando o seu uso original é perdido; a dessacralização feita pelo conquistador ocidental teve esse aspecto erosivo em relação à arte africana, por primeiro, ao tentar acomodá-la à própria dimensão de “arte” conhecida pelos ocidentais.
A Negritude, enfim, tem o seu aspecto não somente de um resgate de uma “nacionadade” hipotética (conceito problemático, porque as tribos africanas jamais se constituíram em um Estado-Nação), mas a meu ver, acima de tudo, é um resgate de uma autêntica sacralidade perdida ao longo do processo colonizador imposto verticalmente pelas potências européias. A Negritude, a meu ver, se prende antes a uma questão de fé — tendo como ponto de partida o reconhecimento de Hailé Selassié como “messias” dos rastafarianos, o que bem indica o fundo sacral do movimento desde as suas raízes religiosas — do que a uma questão racial ou cultural dentro do que chamaríamos “cultura” e “raça” dentro dos parâmetros ocidentais hegemônicos; a uma fé que os colonizadores negaram qualquer legalidade como parte de sua estratégia para dominar os negros e expropriar as riquezas do solo onde moram. Foi assim com a proibição dos cultos de matriz africana durante a longa noite da escravatura (que em nada se confunde com a servidão de linhagem praticada em algumas tribos africanas e que mais se assemelhava, em suas instituições, à servidão conhecida pelos hebreus do Antigo Testamento) e ainda hoje se verifica resistir esse assujeitamento do negro mediante atos de intolerância religiosa cometidos, em regra, por cristãos fundamentalistas, que, por serem demasiado recentes, dispensam maiores comentários aqui.
Em “As Estátuas Também Morrem”, Alione Diop denuncia a expropriação dos elementos da cultura africana como “curiosidades” e “pitorescos” que vão parar em museus, totalmente despidas de seu sentido original.
Isto me recorda uma reclamação feita no Rio de Janeiro por Pais e Mães de Santo, no sentido de que fossem restituídos aos seus centros e terreiros as imagens de Orixás e Entidades confiscadas pelas autoridades policiais no início do Século XX, e que se encontram hoje conservadas no Museu da Polícia Civil. De um lado, os religiosos protestam pela profanação de suas imagens, que estão “mortas” nas prateleiras do prédio da Rua da Relação; de outro lado, a Chefia de Polícia Civil defende a manutenção das imagens em seus acervos, como forma de ilustrar o preconceito e a discriminação que havia contra os negros durante a República Velha, como algo que não deve ser repetido em nosso tempo. Ainda que se acredite nas “boas intenções” da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, nossa posição pessoal quanto a isso é que, segundo o artigo 118 do Código de Processo Penal, os objetos porventura apreendidos em operação policial devem ser restituídos aos seus legítimos donos, desde que a sua posse não constitua crime (como ocorre, verbi gratia, com as armas de fogo sem registro); assim, se a intenção da PCERJ é ter um “documento” da forma brutal como eram tratadas as religiões afro-descendentes (como “casos de polícia”), bastaria que expusessem fotografias das imagens apreendidas, ou mandassem confeccionar réplicas, que por não terem sido consagradas nos terreiros, podem ser expostas sem causar escândalo ao sentimento religioso dos adeptos da umbanda e do candomblé.
Vejo este fenômeno em todas as partes; por exemplo, quando se vai a um museu e não se pode mais tocar (e interagir) com os “bichos” de Lygia Clark, por exemplo, que se encontram em uma vitrine, temos a morte de uma obra outrora viva.
A massificação e o nivelamento da sociedade de consumo não atinge apenas a cultura africana; tudo o que as eras passadas criaram está sendo reduzido a objeto de consumo. Da Mona Lisa ao retrato de Che Guevara; os gafanhotos destruíram tudo.
Porém, vejo que uma estátua morta pode reviver ou reencarnar; quando ela adquire um outro uso e se torna referência de outra cultura que não aquela que a plasmou.
O mais eloqüente exemplo é o da Esfinge de Gizé, uma estátua que sobreviveu à morte da cultura egípcia sempre se reencarnando e revivendo, a cada nova geração, contemplando do alto de seus quarenta séculos (ou mais) enquanto é contemplada, e adquirindo uma nova significação a cada vez que retorna de debaixo das areias do deserto. Assim pode ser com as imagens africanas, essas “preces de madeira e de pedra” que, ora destituídas de seu objetivo primeiro, em uma sociedade que superou os seus deuses, ainda atribuir outro significado aos restos dessa cultura, e fazê-las viver novamente.