8.1.17

UM PAÍS EM RUÍNA

Por LÚCIO FLÁVIO PINTO - Via blog do autor -


O Brasil vive numa guerra civil não declarada. O crime organizado se tornou um Estado dentro do Estado. As penitenciárias funcionam como quartel-general dos bandidos. São também o centro de aperfeiçoamento do crime.

De tão repetidas, frases como estas se tornaram vazias. Pareciam retórica ou exagero até o primeiro dia deste já terrível 2017. Milhares – ou milhões? – de seres humanos puderam ver, através da internet, cenas que nem mesmo a mais selvagem fantasia poderia conceber. Num local insalubre, homens cortavam as cabeças de outros homens, os retalhavam, evisceravam, arrancavam de seus corpos já desfigurados seus corações, exibindo-os como se fossem partes de animais comestíveis.

Não era só uma selvageria sem paralelo. Um dos carrascos pegava o braço de um decapitado e simulava um aceno mórbido para o celular, que tudo registrava, transformando em imagem cenas cruéis mal elas iam se constituindo. Outro chutava cadáveres ou subia nos corpos inanimados.

Além disso, certamente sob efeito de droga, o narrador assinava a autoria das barbaridades e mandava recado para os destinatários finais daquela matança, o maior desde Carandiru, em São Paulo um quarto de século antes. Na penitenciária de Manaus, as execuções somaram mais da metade da chacina da antiga casa de detenção paulistana, em proporção muito mais grave comparativamente à população carcerária e todos os moradores do Estado do Amazonas. E porque em São Paulo grande parte das mortes foi pelo acerto de contas da Polícia Militar com os presos, não por morte entre eles.

Não se imaginaria que um ato desse porte poderia acontecer numa penitenciária amazonense, tão longe das sedes das duas principais organizações criminosas do Brasil: o Primeiro Comando da Capital, de São Paulo, e o Comando Vermelho, do Rio de Janeiro. E que cinco dias depois outra matança, com as mesmas características, se repetiria, ontem, em Boa Vista, capital do Estado mais setentrional do país, com metade dos mortos da penitenciária de Manaus – mas, comparativamente, ainda mais grave do que ela.

A narrativa debochada de quem filmava os atos de execução e os recados que mandava tinham um destinatário final: o Estado, em todas as suas configurações (União, Estados e municípios). O mensageiro não deixava dúvidas: o crime organizado, com dezenas de milhares de militantes dispostos a tudo, se considerava acima e além do poder público organizado, do seu aparato humano e das suas leis. Não tinha a menor hesitação nem receio de se identificar. Olhando através do governo, como por um vidro transparente, visava quem estava do outro lado, o contracanto diabólico de outro bandido.

Em Manaus, a Família do Norte, com o suporte do CV carioca, atacava ferozmente o PCC paulista, numa irreversível declaração de guerra, aparentemente respondida a partir de Roraima, capaz de prosseguir no Pará, no Acre ou no Maranhão, na periferia do poder real (se aproximando dele) uns contra os outros integrantes das facções, mas podendo ir além delas, até o cidadão comum ou até mesmo aos governantes. O crime organizado pôs fim a todos os limites. É matar e – ou – morrer até o objetivo pretendido: o controle da mais rentável atividade econômica (no Brasil e em muitos países). Até o tráfico de drogas e suas conexões e derivações em uma cornucópia imensa.

Para atingir essa meta, tudo é possível, até mesmo confrontar a representação institucional da sociedade, com suas regras legais, seu aparato bélico, seus exércitos. Usando tudo isso contra suas próprias origens. O roteiro desse fluxo é bem conhecido pelos criminosos, que pagam propinas, extorquem, ameaçam e convivem com essa estrutura legal. Só que ela não é uma estrutura compartimentada. Ela se mistura, se envolve e se esconde na ilegalidade, no mundo invisível, no qual bandidos e líderes políticos se cruzam ou se associam. Uns recebendo propinas milionárias. Outros matando para ter receitas milionárias. Bandidos, todos eles. Iguais.

As cenas que continuam a circular pela internet situam o Brasil como um dos países mais selvagens e brutalizados do mundo, sem que os atos ultrajantes decorram de uma guerra convencional nem mesmo de uma guerra civil perfeitamente caracterizada. O homem que, dentro da penitenciária, teve meios para invadir pavilhões, matar, decapitar e esquartejar outros presos, desprezando a mais remota dimensão de humanidade no corpo de uma pessoa, continuará com o mesmo poder ainda que trancafiado. Mas também poderá estar na rua daqui a pouco, de alguma forma.

Se isso acontecer, será a ruína de um país que prometia, como o Brasil.