Via Fazendo Media -
Os movimentos sociais estão mobilizados e na resistência faz muito
tempo, como os Movimentos pelo transporte, Movimento dos atingidos pelos
grandes empreendimentos (Vale do Rio Doce, Belo Monte etc.) e Comitês
Populares da Copa do Mundo, Movimentos Feministas, Movimento GLBT’s,
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Movimento dos Sem Emprego,
Comissões Pastorais, Movimento Estudantil e uma grande variedade de
outros movimentos.
Os dois últimos governos Lula e o governo Dilma representam uma
construção histórica e anos de luta de uma significativa parcela da
classe trabalhadora no Brasil, protagonistas em algumas mudanças muito
bem avaliadas na vida imediata do povo brasileiro, como, por exemplo, as
políticas de redistribuição de renda e o ensino superior. Contudo, não é
por isso que não podemos questionar se as ações do governo
desestabilizam ou mantém os aparatos de Estado que produzem desigualdade
e injustiça social no Brasil. E por isso parece importante questionar:
Qual Copa estamos tendo e quais olimpíadas teremos em 2016? Lembrando
que a Copa do Mundo e as Olimpíadas no Brasil não passaram por
plebiscito ou referendo popular.
As grandes manifestações estão reiniciando e parece que não vão parar
mesmo com a forte repressão policial, pelo menos até o final da Copa do
Mundo. Observar e estar atento nas ruas é importante, até para disputar
os rumos desse processo histórico. Paulo Freire já dizia algo do tipo
“a cabeça pensa a partir de onde os pés pisam”.
Nem todo mundo está indo para a rua por conta dos gastos da Copa, mas
por uma série de motivos, desde @s “coxinhas” oportunistas, até grupos
como o MTST e categorias em greve, como professores, vigilantes,
rodoviários e demais grupos que lutam por mais dignidade no trabalho e
os povos indígenas que tentam, de maneira legítima, chamar a atenção
internacional sobre a violação dos seus Direitos Humanos.
Esses grupos vão querer ocupar a cena da Copa do Mundo 2014. Lembrando
que essa apropriação ocorreu em outras copas do mundo, como foi, por
exemplo, em 1978 com a ação das mães da Praça de Maio na Copa da Argentina.
Entretanto, só pautar os gastos da Copa nas manifestações parece ser
inócuo e não traz muitos avanços para questões de fundo e problemas que
nos perseguem há muito tempo. Para começo de conversa, quando se fala em
gastos públicos no Brasil, o debate poderia incluir uma revisão da
nossa Dívida Pública,
que o atual governo insiste em continuar pagando e que consome entre
45-50% do PIB para bancos e especuladores, e questionar porque não se
faz uma auditoria dessa dívida. O Equador fez uma auditoria e averiguaram diversas irregularidades, chegando a anular 70% da sua dívida.
Outro ponto é que essas manifestações também são uma resposta à negligência
com as políticas relacionadas à juventude e aos direitos sociais
básicos, como a questão das reformas urbana e agrária, da mobilidade e a
falta de planejamento diante do atual momento demográfico do país, com a
maior população em faixa etária jovem da história. Desde junho do ano
passado quem vai para as ruas em grande parte são jovens.
Contudo, se observa muitos discursos e ações políticas na mídia, na
blogsfera e nas redes sociais que atuam na produção de um discurso as
vésperas das eleições e da Copa do Mundo, que coloca de um lado, o
governo Dilma (desconsiderando o amplo leque ideológico de alianças)
como “esquerda”, e, por outro, Aécio (PSDB), Eduardo Campos (PSB) e os
manifestantes nas ruas do Brasil (sobretudo os Black Blocs)
como a “direita” ou “quem não quer o bem do Brasil”. Esta visão, que
nasce no seio governista, começou mais forte, aqui e ali, em especial
desde junho de 2013, pois foi à forma dicotômica e maniqueísta que
encontraram para politizar sua base social sobre as manifestações
ocasionadas pela precária mobilidade da população, a falta de um projeto
de reforma urbana e agrária, gentrificação das cidades sede de
megaeventos e a reação sobre a desmedida violência policial no Brasil.
Alguns membros do governo, governistas e outros “istas”, ao
criticarem e colocarem todos “no mesmo saco”, como os manifestantes que
vão às ruas protestar – os indígenas, a galera do “Não vai ter Copa”,
“Copa para quem?”, Coxinhas de direita, os Black Blocs, categorias de
trabalhadores e outros -, pejorativamente tentam desqualificar e
reprimir seus supostos opositores. Da mesma forma, muitos
“oposicionistas” fazem isso com a coisa dos “PTralhas”, “CorruPTos”,
“comunistas” e seus reclames pela perda pequena e gradual dos
privilégios elitistas que tinham antes.
Esses grupos ao fazerem isso e ao não realizarem a autocrítica sobre a
sua ação política e a falta de diálogo com esses grupos sociais, não
apenas estabelecem uma retórica contraditória, mas também estimulam a
repetição e a banalização de uma atitude autoritária, o que, sob o reino
do cinismo, como indica Safatle (2008), tende a gerar uma inércia na forma de agir, pois o sujeito se automatiza e reflete de uma forma banal sobre o seu próprio ato.
Isso se cristaliza na superexposição de algumas lutas pela mídia e
pelas redes sociais, quase com caráter “sagrado”, e na desqualificação e
criminalização cotidiana de outras lutas, criando estereótipos a partir
de temas que acabam sendo pouco aprofundados, como por exemplo, a
questão da violência policial e do dito vandalismo: quem o produz de
fato, quem tem o poder oficial de exercê-lo, como o faz e com quais
objetivos. O sistema elabora muitas armadilhas para a gente se confundir
ou para nos ocuparmos fazendo coisas que até parecem interessantes, mas
que não vão ao “X da questão”. Em relação a isso, Noam Chomsky em um
dos seus escritos abordou as estratégias de manipulação das informações e da mídia.
A visão e o estímulo a uma leitura da realidade de forma dual e
maniqueísta entre esquerda e direita no atual estágio do capitalismo,
parecem estimular uma cultura política rasa e estática na compreensão da
realidade em relação às manifestações ou a eleição presidencial. Esse
tipo de postura favorece uma visão idealizada na qual quem parece não
estar concordando com tudo que a “esquerda” está fazendo,
necessariamente está fazendo o jogo da “direita” que tem um modelo
elitista e anti-social de governar. O estímulo à formação desse tipo de
cultura política é bastante influente e se entrelaça com discursos de
democracia, fazendo com que diretrizes conservadoras, autoritárias e
excludentes se reconfigurem e se apresentem com um revestimento e um
viés popular e democratizante (Zizek, 2013).
Além dos grandes meios de comunicação, as redes sociais estão sendo
um território fértil para esse tipo de disputa, que gradualmente
estimulam uma visão muito, mas muito restrita e uma cultura política
aparente e banal, que rememora em certa medida as peripécias e a forma
de fazer política de Luís Bonaparte relatadas em 18 Brumário de Karl Marx (aliás, os “bolados e políticos de facebook” com suas postagens e eventos me fazem lembrar dos dezembristas).
O poder social e econômico que rege as relações políticas nos
governos, não é só garantido por aparatos repressivos do Estado como a
nossa polícia repressora e defensora das elites, mas é garantido pela
formação de hegemonia cultural a partir do controle do sistema
educacional, das instituições religiosas e dos meios de comunicação.
Essas instituições influenciam na formação e condicionamento de um
conjunto de pressupostos, normas, crenças, valores e atitudes políticas
inerentes e presentes em uma sociedade, quase espontâneas, formando
blocos de poder na sociedade.
Essa cultura política que se engendra em um conjunto de ações e
relações, como as que levam a essa visão dual de Bem x Mal na disputa
eleitoral e na formação de opinião sobre quem poderá gerar as
transformações e a igualdade social no Brasil, além de ocorrer na
disputa eleitoral, passam pelos organismos sociais e políticos; por
exemplo, a escola, partidos, igreja, meios de comunicação, movimentos
sociais, família etc. Nesse sentido, o que temos enquanto sociedade e
democracia representativa, que elege os representantes pelo voto
obrigatório, perpassa também a relação de cada pessoa com a política no
dia a dia, a partir dos mecanismos de coerção e de consenso para o
questionamento ou a manutenção da dominação de grupos restritos sobre a
sociedade e as suas instituições. E nós, a todo o momento, mesmo achando
que não, interagimos com isso, seja no off ou on line.
Se limitarmos a nossa cultura e formação política a uma visão
sectária e maniqueísta tenderemos a fazer parte do jogo que dizemos não
fazer parte. Sejamos francos, atualmente qual dos (as) candidatos (as)
que estão liderando as pesquisas para presidente
oferecem uma discussão sobre uma transformação de sistema social,
econômico e político, ou aborda efetivamente aspectos utópicos para um
Brasil com igualdade e justiça social? É importante rememorarmos que os
(as) candidatos (as) a cargos eletivos ao executivo e legislativo são
sujeitos, como nós, que representam nesse tempo e espaço uma forma de
ser e estar em nossa sociedade.
Lembrando que mesmo que nos façamos de desentendidos, por exemplo,
com as cenas de barbárie como os linchamentos, os casos de justiça com
as próprias mãos recentes e os constantes abusos de autoridade das
polícias no Brasil (os que são denunciados e noticiados) são
componentes, em alguma medida, de uma cultura política dicotômica e
maniqueísta sobre a sociedade que vivemos. Entretanto, na hora que acontece algo assim, todo mundo quer “lavar as mãos” perante a opinião pública e eximir-se do estímulo a essa política cotidiana.
O aparente é denso. Vivemos em sociedade e por mais que o sistema
tenha inculcado em nossas mentes o individualismo e o consumismo nas
relações humanas, coexistimos e convivemos em sociedade, onde somos
todos responsáveis de alguma maneira pela vida que temos em conjunto,
tanto pelos nossos atos, como nossas omissões. Assumir isso pode ser um
primeiro ou um dos passos para outra forma de viver diferente desta.
Além de rotular manifestantes ou eleger alguém, algumas questões podem
ser necessárias e possíveis de ser pensadas, como: Qual o Estado e a
democracia que queremos? Estado e democracia para quê e para quem?
(*)Sérgio Botton Barcellos é pesquisador. Doutor em Ciências Sociais pelo CPDA/UFRRJ.



