Via Folhapress -
Quando completou 13 anos, a indiana
Sudhira, 60, se casou em seu vilarejo. De sua sogra, recebeu uma
"herança" em vida: uma cesta de bambu, uma pá, uma vassoura e 60
casas para limpar. A partir daquele momento, o emprego de Sudhira seria limpar
o excremento das pessoas do vilarejo, todos os dias. "Da primeira vez que
tive de tirar o cocô com a mãos, o cheiro era tão horrível, que eu
vomitei", contou à Folha.
Quarenta e sete anos depois, Sudhira
continua limpando excrementos. Acorda às 7h e começa sua ronda. Na primeira
casa, vai até o fundo do terreno, onde fica o "banheiro" – um buraco
raso no chão, cercado por uma parede baixa de tijolos.
Cheira muito mal. Em meio a uma nuvem
de moscas, Sudhira se agacha, retira os excrementos com uma pá, que segura na
mão sem luva. Junta um pouco de folhas, terra e cinzas e põe em cima das fezes.
Recolhe esse bolo de excrementos com a pá e põe na cesta que leva sobre a
cabeça. Às vezes, escorre.
Sudhira recebe 20 rúpias (US$ 0,30) e
um pão roti de cada casa. Limpa quatro latrinas por dia e, em outras 10 casas,
retira o lixo e os excrementos de animais. Ninguém encosta em Sudhira, porque
ela é considerada "poluída".
Há 1,3 milhão de pessoas na Índia que
são "catadores de excrementos" como Sudhira. Elas pertencem a uma
casta de intocáveis.
Neste país que é uma potência e já
mandou um foguete para Marte, cerca de 600 milhões de pessoas fazem suas
necessidades ao ar livre, no mato. Outras 15 milhões usam as chamadas
"latrinas secas", que nada mais são do que buracos no chão usados por
toda a família para fazer suas necessidades. São limpos por pessoas da casta
dos intocáveis, os dalits. As mulheres são 98% dos catadores de excrementos.
Andando pelo vilarejo com a catadora
Saraswati, 45, vê-se lixo por toda parte, amontoado em pilhas altas, com porcos
e vacas "pastando" nos detritos. É lá que ela joga os excrementos que
recolheu na bacia que leva na cabeça. Não há coleta de lixo.
Segundo dados do Banco Mundial, uma em
cada dez mortes da Índia se deve à falta de saneamento básico –ou seja, cerca
de 780 mil indianos por ano.
Em junho de 2011, o primeiro-ministro,
Manmohan Singh, disse que a atividade de catar excrementos manualmente era
"uma das maiores manchas no processo de desenvolvimento da Índia" e
prometeu eliminar a prática até o fim daquele ano.
O governo já aprovou duas leis que
proíbem esse tipo de trabalho, em 1993 e 2013, mas os avanços são lentos.
"O governo deveria aumentar a
fiscalização e impor punições mais severas para quem empregar catadores de
excrementos", disse Bezwada Wilson, coordenador do SKA, um movimento
nacional para a erradicação da coleta manual de excrementos.
VERGONHA
O maior empregador de catadores de
excrementos da Índia é o sistema ferroviário.
São 178 mil vagões de trens, cada um
com quatro banheiros. Não existe nenhum tratamento. A pessoa faz suas
necessidades, e os excrementos caem sobre os trilhos. O catador de excrementos
limpa.
"Meu irmão trabalhou nas ferrovias
da Índia limpando cocô por 18 anos; ele tinha vergonha, dizia para a mulher
dele que trabalhava nas minas de ouro", conta Wilson.
"As ferrovias indianas são o maior
esgoto a céu aberto do mundo", admite Jairam Ramesh, ministro do
Desenvolvimento Rural da Índia. "Todos os trens comprados agora vêm
equipados com banheiros químicos e estamos adaptando os antigos, mas leva
tempo", diz.
O governo dá 10 mil rúpias (US$ 200)
para famílias construírem privadas com fossa. Segundo Ramesh, foram construídos
6 milhões de privadas de 2013 para cá.
Trata-se de uma questão de segurança
também. Segundo levantamento do Estado indiano de Bihar, 400 mulheres teriam
escapado de ser estupradas em 2012 se houvesse privadas nas casas. Isso porque
cerca de 40% dos estupros ocorreram quando as mulheres iam para o mato fazer
suas necessidades.
Mas não basta melhorar o saneamento
básico para eliminar a coleta manual de excrementos. É preciso treinar os
catadores para que eles possam ter outra atividade.
A Sulabh International, por exemplo,
ensina 400 catadoras de excrementos do Rajastão e Uttar Pradesh a costurar,
fazer bolsas, tapetes e bordados, além de lhes dar uma ajuda financeira.
"Quando comecei a trabalhar com os
intocáveis, 40 anos atrás, foi uma revolução; na minha família, quem encostava
em dalit tinha que tomar urina de vaca para se purificar", diz o fundador
da Sulabh, Bindeshwar Pathak.
Ele é um brahma, casta mais alta da
Índia, e desenvolveu um vaso sanitário com fossa que pode ser construído por
US$ 30. Mantém, ainda, um museu da privada em Nova Déli.
Usha Chaumar, 35, foi "libertada" em 2003, quando se juntou ao programa. Hoje faz roupas para vender. "Agora pessoas de casta superior me chamam para conversar e até pegam na minha mão", disse ela, que catava excrementos desde os 7 anos. Mas o preconceito ainda está lá.
Usha Chaumar, 35, foi "libertada" em 2003, quando se juntou ao programa. Hoje faz roupas para vender. "Agora pessoas de casta superior me chamam para conversar e até pegam na minha mão", disse ela, que catava excrementos desde os 7 anos. Mas o preconceito ainda está lá.
"As pessoas nunca vão contratar balmikis [casta inferior] para limpar a casa delas ou lhes fazer comida; por isso, nós damos treinamento", diz Wilson.
"O sistema de castas está lá, e se espera que eles cumpram esse que seria seu 'karma' na vida: limpar a merda dos outros", afirma.
*Texto de Patrícia Campos Mello, enviada especial a Farrukh
Nagar (Índia).