LUIZ ANTONIO SIMAS -
Atendendo a um pedido e sendo simples, escrevi sobre o sambão do Salgueiro para quem não tem iniciação nos ritos dos candomblés e umbandas e quer sacar melhor a letra macumbada.
Simbora:
"Vai trovejar!
Abram caminhos pro grande Obá"
- O samba começa com a evocação a um elemento da natureza ligado a Xangô e Iansã: o trovão. Obá é o rei ou governante entre os iorubás. Não confundir com a orixá Obá, que aparecerá no samba.
"É força, é poder, o Aláfin de Oyó
Oba Ko so! Ao Rei Maior!"
- Alafin é um título dos obás, governantes do reino iorubá de Oyó. A tradição diz que o Xangô histórico foi o quarto alafin de Oyó, filho de Oranian e Torosi.
Oba Ko so - significa em português algo como "o rei não se enforcou" ou "o chefe não morreu" e se refere ao mito em que Xangô teria se enforcado por conta de uma vergonha que passou em Oyó. Resumo rapidamente: ao ganhar o poder de lançar fogo pela boca (o nascimento dos raios), Xangô não teve cuidados e, deslumbrado com o poder obtido, incendiou sem querer o próprio palácio. Envergonhado, foi para a floresta e se enforcou. Os partidários de Xangô, todavia, começaram a dizer que ele não tinha se enforcado, mas virado um poderoso orixá, encantado no fogo, deixando na terra um grande buraco. Obá ko so é uma expressão presente em um canto muito popular na cerimônia da "Fogueira de Xangô", uma das mais fortes do candomblé. O rei está vivo! O Rei não se enforcou!, diz o Salgueiro.
"É pedra quando a justiça pesa
O Alujá carrega a fúria do tambor"
- Referência a Xangô como um orixá da justiça, característica muito marcante do orixá no Brasil, e que tem a pedra (sobretudo a pedra de raio) como um de seus elementos.
- o alujá é o toque clássico de Xangô nos candomblés. Em português, "alujá" significa algo como orifício ou perfuração. Provavelmente, como Verger chegou a anotar, o nome tem relação com o mito de que Xangô, ao virar um orixá, deixou um buraco na terra ao se encantar no fogo. O alujá é um toque rápido e triunfal, evocando os poderes do orixá que dança com a força e a beleza das grandes labaredas.
"No vento, a sedução (Oyá)
O verdadeiro amor (Oraiêiêô)
E no sacrifício de Obà (Obà Xi Obà)
Lá vem Salgueiro!"
Referência ao mito das três mulheres de Xangô. Iansã - a senhora dos ventos - era a paixão manifesta no desejo da carne. Oxum (aqui citada pela sua saudação: oraieiêô) é a esposa sensual, devotada e ciumenta (os ciumes de Xangô também são terríveis). E Obá foi aquela que, se sentindo a menos amada, perguntou a Oxum o que ela tinha feito para ter o amor do rei. Oxum mentiu para Obá. Cobriu a orelha com um lenço e disse que Xangô a amava porque ela tinha oferecido a ele sua própria orelha, dentro de uma gamela - Xangô só come em gamelas de madeira, nunca em louças - com amalá-ilá (a comida predileta de Xangô, feita com quiabo). Obá cortou a orelha, acreditando em Oxum, e ofereceu a Xangô. Horrorizado, Xangô expulsou Obá de seu reino. Aqui eu fiz a seguinte leitura: o samba diz que "no sacrifício de Obá / lá vem Salgueiro". Será uma possível referência ao sacrifício amoroso de colocar um carnaval na rua?
"Mora na pedreira, é a lei na Terra
Vem de Aruanda pra vencer a guerra
Eis o justiceiro da Nação Nagô
Samba corre gira, gira pra Xangô"
Aqui já temos uma transição. É Xangô saindo da África e chegando ao Brasil. A pedreira é, especialmente na diáspora, considerada um elemento do orixá, detalhe presente com muita força na umbanda. O trecho também fala da Aruanda, uma espécie de lugar espiritual de onde vinham e para onde retornariam os espíritos ancestrais. Há quem diga que a Aruanda faria referência ao porto de Luanda, em Angola. De toda forma, a Aruanda é um lugar encantado de origem e retorno muito mais presente nos mitos da umbanda do que nos do candomblé. A gira é a sessão das umbandas e encantarias. Defendo que a palavra seja uma corruptela de canjira. A canjira e o nome dado ao conjunto de danças rituais, realizadas em um grande círculo, nos terreiros muxicongos, angolo-congoleses, e nas casas de umbanda e quimbanda, unindo o conjunto de toques, transes e mandingas.
"Rito sagrado, ariaxé
Na igreja ou no candomblé
A benção, meu Orixá!
É água pra benzer, fogueira pra queimar
Com seu oxê, chama pra purificar"
- O ariaxé é o local do terreiro onde estão enterrados os diversos fundamentos secretos da casa. Há quem se refira também a ariaxé para designar o local onde são preparados os banhos com as folhas sagradas dos orixás ou mesmo o quarto de recolhimento de noviças que estão fazendo a iniciação.
- "Na igreja" pode ser referência ao sincretismo ou a um antigo rito de alguns velhos terreiros de candomblé, hoje praticamente extinto: as iaôs, no processo final de iniciação, costumavam percorrer até sete igrejas.
- O oxé é a grande ferramenta de Xangô; um machado de dois gumes
"Bahia, meus olhos ainda estão brilhando
Hoje marejados de saudade
Incorporados de felicidade
Fogo no gongá, salve o meu protetor
Canta pra saudar, Obanixé kaô!
Machado desce e o terreiro treme
Ojuobá! Quem não deve não teme!"
- A evocação ao estado da Bahia é certamente referência ao enredo de 1969 do Salgueiro: Bahia de todos os deuses. Naquele carnaval, pela primeira vez, o falecido professor Júlio Machado desfilou como destaque com a fantasia de Xangô do Salgueiro.
- O gongá é uma espécie de altar nas umbandas, onde ficam as imagens das entidades. Nas umbandas, aliás, Xangô costuma ser sincretizado principalmente com São Pedro, São João ou São Jerônimo.
- Obanixé Kawó kabiyèsílé é a grande saudação de Xangô. Algo no sentido de "saúdem o rei que está na terra/na casa".
- Ojuobá é um título de alta dignidade no candomblé, dado a pessoas notáveis e de grande sabedoria na casa de Xangô. Literalmente: os olhos do rei.
"Olori xango eieô
Olori xango eieô
Kabesilé, meu padroeiro
Traz a vitória pro meu Salgueiro."
O refrão! Aqui o bicho pega e o babado é forte. Orunmilá, o orixá da sabedoria oracular e sabedor dos destinos, diz que existem três espiritualidades importantíssimas relacionadas com Olori, que adquirimos antes mesmo do nosso nascimento: Aiama é a espiritualidade que escolhemos no Orum, aos pés de Olofin antes da grande e misteriosa descida para a vida terrena. Orunmilá testemunhou essa escolha.
Ainda no Orum, escolhemos também Akulela; um conjunto de atributos, virtudes, qualidades, defeitos, que carregaremos pela vida. Potencializar os irês (coisas boas) e afastar nossas tendências negativas ao longo da vida é processo que inclui autoconhecimento, boa conduta, consulta ao oráculo e ebó.
E a terceira? Me parece que aí entra o sentido do samba do Salgueiro. É Akuleba, a manifestação em nós das características de um orixá; aquelas que adquirimos na grande viagem que fazemos do Orum (o invisível) ao Ayê (essa vida na terra) nos ventres das poderosas mães.
Conclusão: Olori Xangô é uma fortíssima evocação da espiritualidade de Xangô presente em cada um de seus filhos. No caso do refrão, o grande filho me parece ser o próprio Salgueiro.
Esse samba, do Marcelo Motta, Fred Camacho e parceiros, é quente!
Fonte: Facebook