LUIZ ANTONIO SIMAS -
Eu escolhi uma profissão que está morrendo.
Entrei em uma faculdade de História com um objetivo profissional: dar aulas para crianças e adolescentes. Não entrei pensando em fazer carreira acadêmica ou pesquisa; entrei para ser professor de escola e isso é o que mais gosto de fazer. Com o tempo, percebi que amo ver a rua na escola e a escola na rua. Educação, afinal, é um fazer constante e cotidiano de experimentar o mundo em qualquer canto.
Já dei aulas em praças públicas, feiras livres, universidades, quadras de escolas de samba, botequins, clubes, cemitério, cinema, casa abandonada, acampamento de sem terras, tenda espírita, terreiro de macumba, livraria, restaurante, museu, barracão de escola de samba, festa de São João, chegada de Papai Noel e campinho de futebol. Dei palestra na Acadêmia Brasileira de Letras, na UFRJ, na UERJ, na PUC, na USP e na Vila Mimosa. E sempre, sempre, concebendo isso como extensão da escola.
Minha experiência é de bicho de sala de aula. Afirmo, portanto, que não existe escola democrática sem a ideia de negociação permanente. A escola sem conflitos é uma instituição defunta. Neste sentido, a interação nas escolas se estabelece, em meio a conflitos e consensos, entre pessoas com visões de mundo e culturas diferentes que se posicionam. Ou deveria se estabelecer assim.
Eu aprendo e ensino nas escolas que não há detentores do monopólio do saber, da inteligência, da beleza estética ou da verdade. As sociedades contemporâneas são complexas e heterogêneas. A escola, por isso mesmo, deve pensar permanentemente o dissenso criativo e o convívio entre diferentes com direitos correlatos. E para isso, a escola precisa discutir, debater e fomentar ideias.
Charles Taylor dizia que um indivíduo e um grupo de pessoas podem sofrer um dano irreparável se a gente ou a sociedade que os rodeiam lhes mostram como reflexo, uma imagem degradante, limitada e depreciada sobre eles. Fanon falava do racismo simbólico, que desqualifica saberes dos subalternos e incute neles a noção da inferioridade de suas culturas como verdade indiscutível. Nesta perspectiva, nada é pior para trabalhar a diversidade que o modelo de escola determinista, individualista e privatista: aquele que destaca mais o que a pessoa não sabe do que aquilo que ela é capaz de saber e ornamenta isso com o discurso da neutralidade, como se ela fosse possível. Esse modelo é especialista em destroçar a estima dos educandos e realizar a tarefa da degradação dos corpos. É a escola como fábrica de gentes doentes e desencantadas.
A escola como instituição está em crise. Ela é hoje, no Brasil, estruturalmente seletiva e inimiga da diversidade. A tendência é piorar. Com exceções, continuamos nos baseando na avaliação de resultados (e não na avaliação de processos) sobre critérios supostamente objetivos (provas e testes convencionais, por exemplo). Esse modelo esconde a não aceitação da diversidade ao usar critérios fechados para avaliar diferentes. As exceções a este desencanto vêm de iniciativas bravíssimas - sobretudo em algumas escolas públicas - que agora se encontram sob terrível ameaça.
Repito o que escrevi dia desses: o modelo educacional exclusivamente centrado na sala de aula é uma instituição falida (a sala de aula, de novo com exceções, é um espaço estruturado para domesticar e controlar os corpos), o processo de aprendizagem tem que dialogar com a rua, o ensino baseado em avaliações convencionais fracassou, o excesso de conteúdo é um disparate, os currículos normativos produziram conhecimentos vazios e a imposição do cânone ocidental na educação brasileira - como recorte quase exclusivo do saber - é fomentadora de preconceito, intolerância, violência e dor contra os que não se enquadram no padrão uniforme que o cânone preconiza como modelo a ser seguido.
A cereja do bolo da destruição da escola no Brasil é essa boçalidade neocolonial da escola sem partido, que desqualifica o professor e, sobretudo, as alunas e alunos, imaginando que eles sejam marionetes no processo de aprendizagem. A turma da escola sem partido é aquela que vê a educação, que eu sempre concebi como um campo de experiências inventivas de libertação dos mundos pela cultura, como um espaço de adestramento para o mercado e produção em larga escala de pessoas adoentadas.
A aprovação de uma barbaridade dessas, aliada ao horror do ensino à distância em todos os segmentos, complementará o projeto colonial brasileiro de adestramento dos corpos na lógica da corpo contido pelo medo do pecado, do corpo-arado feito para o trabalho, do corpo viril feito para o estupro, e do corpo feminino feito para ser currado. E a minha profissão será destruída.
Vai acabar.
Sempre haverá, todavia, a praça, o cemitério, a birosca, o boteco, a quitanda, a casa, a rua tensionada, o terreiro e o tesão para ensinar e aprender. Na fresta, porque estes espaços públicos também estão sob ataque nas cidades pensadas como empresas para alguns, tumbeiros para outros tantos e cemitérios de vivos para todos nós.
Mas eu vou continuar. Resistir é pouquíssimo pro que vem pela frente. A tarefa é simplesmente inventar de novo.
Eu nasci e cresci na macumba: sou de escutar o tambor nas brechas da noite grande e sempre haverei de encontrar um lugar para combater da maneira que sei o projeto colonial, racista, misógino, preconceituoso, mesquinho, viril e doente dos filhos das boas famílias brasileiras: aquelas que desde a Casa-Grande não conseguem se conceber sem os seus senhores, seus feitores e capitães do mato.
(Acho que escutei a gargalhada de Bará no meio da noite, quando escrevi que minha profissão está morrendo. Ninguém sabe de onde vem esse riso. Nem saberá. Tá entocado, o moleque. É um sacana! Na vitrola tá tocando Candeia: de qualquer maneira, meu amor, eu canto. De qualquer maneira, meu encanto, eu vou sambar...)
Fonte: Facebook