19.6.18

A BATALHA DE BERNA

LUIZ ANTONIO SIMAS -


Há quem fale em Waterloo, há quem defenda Stalingrado, há os fãs de Balaclava. Sou, todavia, daqueles que acham que a maior batalha da história humana foi travada em Berna, quando Brasil e Hungria se enfrentaram nas quartas de final da Copa de 1954.

É o meu jogo inesquecível, sobretudo porque, como não assisti ao embate em virtude do pequeno detalhe de ainda não ser nascido à época, posso imaginá-lo com as tintas do delírio, coisa que faço desde que ouvi falar a primeira vez da peleja.

Havia uma espécie de clima de velório antecipado na delegação brasileira. Os húngaros vinham atropelando impiedosamente os adversários e, mesmo sem Puskas (o craque estava machucado), eram pule de dez para prosseguir na competição. Ao Brasil restava contar com um milagre.

Antes do início da partida o vestiário canarinho foi invadido por dirigentes em transe nacionalista, dispostos a estimular o time a superar as dificuldades em nome da pátria. João Lira Filho, especialmente, estava com a macaca. Discursou aos berros, comparando os jogadores aos inconfidentes mineiros e os húngaros a Silvério dos Reis, o traidor de Tiradentes. 

Desfraldou depois, aos prantos, a bandeira da Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial.

Não satisfeito, Lira obrigou os jogadores a beijar a bandeira e declarou que naquele jogo contra os húngaros os canarinhos vingariam os mortos de Pistóia - cemitério italiano onde foram enterrados os pracinhas que morreram na guerra. Não ocorreu a ninguém recordar ao homem que brasileiros e húngaros não se enfrentaram no charivari armado por Hitler e Mussolini.

Segundo o testemunho de Nilton Santos, o time entrou em campo com os nervos em frangalhos por causa da maluquice de Lira Filho. Brandãozinho, um dos nossos volantes, não entendeu bulhufas quando o dirigente o chamou de Tomás Antônio Gonzaga, o Dirceu da Marília. Didi, comparado a Tiradentes, começou a achar que o dirigente tinha enlouquecido. O técnico Zezé Moreira tentou expulsá-lo do vestiário, mas o homem estava com a corda toda.

O que se viu a partir da entrada dos times no gramado, debaixo de um dilúvio de deixar Noé com inveja, foi uma das disputas mais emocionantes, violentas e desvairadas da história do futebol.

O técnico Zezé Moreira insistiu numa recomendação aos jogadores: a chave para a vitória contra os húngaros era segurar os primeiros dez minutos e depois partir para o ataque. Não deu certo. Com oito minutos do primeiro tempo a Hungria já tinha feito dois gols em Castilho, com Hidegkuti e Kocsis.

Com surpreendente poder de reação, o Brasil descontou aos 18 minutos, em um pênalti bem cobrado por Djalma Santos. A partir daí o jogo foi pau a pau, com nosso ponteiro Julinho Botelho pintando o sete em campo. Não empatamos na primeira etapa por pouco.

O segundo tempo foi um verdadeiro teste para cardíacos. Os húngaros fizeram o terceiro gol - Lantos de pênalti - mas o Brasil descontou logo com Julinho. Mandamos duas bolas na trave, pressionamos, perdemos Nilton Santos e Humberto expulsos, eles perderam Bozski e, em vantagem no número de jogadores, liquidaram o jogo com um gol de Kocsis no finzinho: 4 X 2 para a Hungria.

Mal o juiz Mr. Ellis apitou o fim do jogo e a verdadeira batalha começou. Puskas, que assistira ao embate das arquibancadas, desceu ao gramado e provocou Pinheiro na entrada do vestiário. O zagueiro canarinho, chegado num fuzuê, revidou e todos os jogadores se envolveram na pancadaria.

Um policial imenso, com mais de 130 quilos, foi correndo apartar a briga, tomou uma rasteira do radialista brasileiro Paulo Planet Buarque e caiu estatelado no gramado. A polícia revidou e jornalistas e dirigentes acabaram se envolvendo no furdunço. O técnico Zezé Moreira viu um gringo de terno correndo em direção ao vestiário e não teve dúvidas; enfiou o cacete no cabra com as chuteiras que Didi trocara durante o jogo e estavam em suas mãos. O agredido era o ministro do Esporte da Hungria, Gustavo Sebes.

Didi, com dotes de capoeirista, mandava rabos de arraias em quem passasse pela frente. Lira Filho, tresloucado desde o discurso no vestiário, começou a correr pelo gramado com a bandeira da Força Expedicionária, aquela mesma que ele obrigara o elenco a beijar por alguma razão desconhecida.

No setor reservado às estações de rádio, para a surpresa dos discretos suíços, o árbitro brasileiro Mário Vianna urrava nos microfones impropérios contra o juiz inglês. Lançando a tese de que o escrete fora vítima de uma conspiração comunista financiada por Moscou, Vianna tentou invadir o vestiário de sua senhoria para, segundo declarou depois, aplicar-lhe um corretivo em nome da pátria e desafiar Stalin.

O final dessa zorra foi o mais inesperado da história das copas. A população no Brasil acompanhou o bafafá pelas rádios e, insuflada pelas acusações de Mário Vianna, resolveu agir contra as ofensas ao país. Perdemos o jogo para a Hungria e o torneio foi na Suíça. No calor das emoções, entretanto, todos os gatos são pardos. Os indignados torcedores cariocas, como bravos guerreiros tupinambás, quebraram, em desagravo ao pavilhão auriverde, a embaixada da Suécia no Rio de Janeiro. (via Facebook)