ADERSON BUSSINGER -
O resultado da votação no Senado, ontem, no qual 50 senadores aprovaram esta infame contra-reforma trabalhista no Brasil ecoa e traduz a seguinte mensagem: queremos a barbárie e a selvageria legalizada! Sim, por mais que seja "dourada" a pílula através deste ou aquele acordo pontual, a ser convertido em eventual medida provisória, é importante ter em conta que o principal objetivo dos diversos setores empresariais, -do comércio á indústria, passando pelo agronegócio-,foi atingido em cheio, com a adoção, na forma agora de lei, do conceito e norma que é a verdadeira antítese do Direito do Trabalho, qual seja, o negociado sobre o legislado.
Pois bem, além de todas as mazelas convertidas em lei pela Câmara dos Deputados e Senado Federal,alterando mais de 100 artigos e mais de 200 dispositivos, incluindo a terceirização, nenhuma é mais daninha que a prevalência do negociado nas relações de trabalho, sendo isto por uma razão muito simples e objetiva, pois as partes na relação trabalhista são intrinsecamente desiguais, desproporcionais, pelo que não há condição alguma de sequer cogitar uma negociação equilibrada, livre, assim como não temos um regime de estabilidade no emprego, ou minima proteção ao emprego, que pudesse minimamente oferecer proteção a quem "negocia", quando o trabalhador se opor ao que é proposto pelo empregador. Cabe, inclusive, rememorar que uma das primeiras medidas do golpe militar de 1964 foi exatamente substituir o regime de estabilidade decenal no emprego pelo FGTS, para que os empresários apoiadores do golpe pudessem impor sua pauta de arrocho salarial, sendo certo, que na maioria dos golpes, mundo afora, seja militar ou parlamentar-judicial, como o ocorrido contra Dilma, os direitos trabalhistas são sempre um dos alvos dos novos governos de plantão.
O Brasil é um dos países com maior incidência de acidentes e doenças profissionais; O trabalho infantil e, inclusive, escravo, ainda persiste, sendo que somente há 90 anos atrás, quando da edição de um Decreto n. 17.934-A, que promulgou o então Código de Menores, começou-se a limitar o trabalho dos menores, inicialmente com idade mínima de 12 anos..., o que revela o quanto é recente nossa legislação protetiva do trabalho, registrando também que a primeira constituição a conferir tratamento de destaque para matéria trabalhista, prevendo salário mínimo e justiça do trabalho, dentre outras medias, é datada de 1934, sendo a CLT de 1943, demonstrando que, apesar dos tímidos avanços em matéria de direitos sociais e humanos das constituições seguintes de 1946 e 1988, o fato é que o sistema de proteção trabalhista é muito recente e, de fato, historicamente, o estatuto normativo que realmente (e solidamente) prevaleceu na maior parte da historia brasileira foi o regime de escravidão. Pois bem, a atual contra-reforma aprovada, após diversas tentativas do governo neoliberal de FHC, consiste em um marco histórico de desproteção trabalhista, permissividade nas relações de trabalho que se assemelham ás condições do inicio do século XX, o que, - não se pode deixar de dizer- os Governos do PT e seus aliados evitaram rever as medidas flexibilizantes da CLT feitas por FHC, bem como o próprio Lula implementou uma parcial reforma previdenciária conforme os interesses empresariais, ainda que inferior ao que hoje proposto.
Neste contexto, o que está ocorrendo agora é inédito, em concentração, quantidade de alterações e profundidade de alcance, um verdadeiro crime histórico-social que acaba de ser votado, regredindo, portanto, há mais de 100 anos a legislação trabalhista no Brasil, quando em 1917 se realizou a primeira grande greve geral por direitos trabalhistas, tornando ainda mais desprotegido o trabalho humano, que doravante poderá ser vendido através da "contratação de autônomos (PJ), para trabalhos contínuos que nada possuem de autonomia; A fixação de contratos de trabalho de 26 e 30 horas, com recebimento de remuneração inferior ao salario mínimo, na forma "parcial", e ainda com possibilidade de horas extras; A possibilidade de contratação de jornadas superiores as 8 horas diárias, bem como o 12 x 36, através de acordo, que agora passa a ter respaldo legal, e que antes somente era permitido para algumas profissões; A exclusão do auxilio-alimentação, diárias de viagens e prêmios enquanto partes integrantes dos salários, o que trará diretamente prejuízo previdenciário, quando do cálculo do valor da aposentadoria;A possibilidade, via acordo coletivo ou convenção, de acordos "sem contrapartidas", que nada mais é, (sabemos bem), que a disfarçada renúncia de direitos trabalhistas, segundo doravante os parâmetros do Código Civil; A possibilidade de mulheres gestantes laborarem em locais insalubres, como as antigas escravas o faziam e chegavam ao óbito nos cafezais e engenhos; O tele-trabalho, sem controle de horário, favorecendo um verdadeiro "tele-sangue-suga" via a modernidade da tecnologia; A não obrigação de pagar o tempo de deslocamento para o trabalho, que já era pacífico na jurisprudência (horas intinere); A limitação da concessão da justiça gratuita na Justiça do Trabalho, bem como a imposição ao empregado de arcar com os honorários periciais; A homologação de rescisões de trabalho sem a fiscalização sindical; A terceirização onde assim aprouver ao dono do negócio, onde e na função que assim desejar o moderno "senhor de terceirizados"; A possibilidade do contrato para prestação de serviço intermitente, quer dizer, com se fosse um "uber", (precisou "usou", não precisou: fica em casa !) E então pergunto: em que casa poderá aguardar a convocação para o trabalho, se não poderá pagar sequer o aluguel desta ?
Por outro lado, contudo, não podemos arrefecer o animo de lutar, pois está colocada agora a tarefa de resistência a esta legislação aprovada, através do movimento organizado, sindicatos, cipas, de forma a impedir que estas leis "peguem", sejam aplicadas, onde os sindicatos, especialmente, terão enorme papel, pois a regra do "negociado sobre o legislado" passa em grande parte por acordos coletivos e convenções, onde será necessário reportar-se ao que temos assegurado constitucionalmente, para fazer frente a legislação infra-constitucional que tudo, ou quase tudo, autoriza, a começar pelos acordos de jornadas semanais e mensais de trabalho, turnos ininterruptos, adicionais de insalubridade, periculosidade, em que a resistência deverá ser grande, pois os empresários, seus negociadores, contarão com o poderoso apelo legal. Temos que desqualificar as alterações aprovadas, seguir atacando esta contra-reforma por seu caráter explicitamente anti-trabalhador, dotada de uma natureza claramente contrária ás normas legais internacionais protetivas como a Declaração dos Direitos Humanos, de 1948; as Convenções da OIT, especialmente sobre segurança e saúde do trabalhador, que preveem que toda pessoa tem direito a condições justas de trabalho, repouso, lazer e limitação razoável do trabalho, sendo que mesmo segundo esta "reforma" as convenções e acordos não poderão prevalecer em temas sobre FGTS, adicional noturno, e salário maternidade, bem como a constituição federal não autoriza, em nenhuma situação, a flexibilização de direitos através de acordos individuais; O projeto aprovado está repleto de inconstitucionalidades, que, segundo parecer do MPT, chegam ao número de 12, isto em uma primeira análise, de pontos que contrariam preceitos constitucionais, cujo questionamento também deverá ser feito no judiciário pelos sindicatos, ao lado das mobilizações de resistência que precisam ser levadas a efeito.
Enfim, reitero que é preciso resistir, lutar com todas as forças e recursos, desde a mobilização aos questionamentos judiciais, ante as contradições legais que se avolumam, na perspectiva de derrubarmos, na luta, esta contra-reforma, em uma linha de verdadeira e corajosa desobediência civil do trabalhador e seus sindicatos, ante um conjunto de alterações legais que atacam seus mais elementares direitos humanos, enquanto pessoas que não podem aceitar tamanha exploração chancelada por uma lei ilegítima, inconstitucional e profundamente injusta, promovida por um governo golpista e ilegítimo, votada por um Senado de maioria corrupta, financiada por quem sabidamente detém o capital em detrimento dos que vivem da força de trabalho. Isto é a barbárie no âmbito trabalhista; mais pobreza e violência na sociedade. Anti-civilizatório. Parafraseando um amigo: vou deixar de ser advogado trabalhista e ser abolicionista.
* Aderson Bussinger, advogado, conselheiro da OAB-RJ, integra o MAIS - Movimento Por Uma Alternativa Independente Socialista. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais/UFF, colaborador do site TRIBUNA DA IMPRENSA Sindical, Diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ, membro Efetivo da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ. Membro Efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros-IAB.