LUIZ ANTONIO SIMAS -
A ancestralidade da enzima africana que catalisou, em um processo com inúmeros cruzamentos, o samba, os candomblés, as capoeiras, os jongos, os zungus, as congadas, os moçambiques... e todas as implicações dos quatro séculos de escravidão no Brasil, fizeram da experiência da diáspora um contundente empreendimento civilizatório de afirmação e invenção de redes associativas, sociabilidades, redefinição de identidades e culturas comunitárias como alternativa ao precário. Colocaram no centro da cena, como protagonistas, populações economicamente subalternas que, pela cultura, assumiram o protagonismo de suas próprias vidas. Do encontro dessa vastíssima tradição com os rituais ameríndios e o catolicismo popular ibérico (profundamente místico) surgiram as nossas macumbas.
Além desses fatores simbólicos mais gerais, a ligação íntima entre o sagrado e o samba - tema que me interessa mais precisamente - aparece com frequência quando estudamos o nascimento das escolas de samba. Pais e mães de santo participaram, constantemente, dos núcleos originais das agremiações e, não raro, funcionaram como verdadeiros esteios deste processo.
Personagens como, por exemplo, Zé Espinguela (o organizador das primeiras disputas, ainda sem o desfile em cortejo, entre as agremiações), Tata Tancredo Silva (Deixa Falar/ Estácio), Dona Ester (Oswaldo Cruz / Portela) e Mano Elói (Império Serrano), são frequentemente citados como articuladores da comunidade do samba e líderes religiosos. As tias baianas da Cidade Nova, desde a seminal Tia Ciata - iniciadas no candomblé e nas macumbas, não raro promoviam em suas casas festas de santo seguidas de rodas de samba, se legitimando como verdadeiras mães do samba.
Há que defina essas culturas como "culturas de sobrevivência", "culturas de resistência", "culturas de supravivência" (eu prefiro trabalhar com esse conceito), "culturas de franjas" e "culturas de frestas". Gosto dos conceitos e sugiro que passemos a cruzar isso com a ideia de "culturas solidárias" e "culturas de contra-ataque" (ando desenvolvendo o conceito, que em breve virará um artigo, a partir de um debate sobre táticas do futebol). São elas, manifestas na amplitude da festa - sagrada/profana - como mecanismo de afirmação da vida, o que temos de mais poderoso do ponto de vista da possibilidade de construção de um Brasil minimamente afirmativo, original e soberano; esse que é o contrário do que andamos vendo por aí e se esfarela.
É isso.
*Historiador e professor.