Por SEBASTIÃO NUNES - Via jornal
GGN -
Com violento chute na
porta, o famigerado Tio Patinhas invadiu o consultório do doutor Sigmund Freud,
em Viena.
– Mentiroso! Embusteiro! Farsante! Psicólogo de merda! – gritava ele, enquanto
apontava com mão tremente um revólver calibre 38 para a barriga do famoso
psicanalista.
Sentado no divã com um charuto na boca, Freud não se abalou: estava acostumado
a lidar com malucos de todo tipo.
– Suponhamos que me mate, caro amigo – tentou argumentar o doutor. – O que é
que você ganhará com essa violência?
– A satisfação do dever cumprido – respondeu o banqueiro. – Os aplausos de meus
pares. Paz de espírito e tranquilidade. Tudo isso.
CREDE, Ó INCRÉUS!
A fúria de Tio Patinhas tinha sentido. Na última reunião da FEINHOBAN,
Federação Internacional de Honestos Banqueiros, realizada em Zurique, dois
velhos artigos do pai da psicanálise, lidos em plenário, desencadearam
violentos protestos.
– E que artigos foram esses? – indagou Freud, ao ser informado da causa
primeira.
– “Caráter e erotismo anal”, publicado em 1908 – respondeu o pato. – E também
“Os deslocamentos da pulsão, particularmente no erotismo anal”, de 1917. Ambos
causaram o maior rebuliço entre nós.
– E por quê? – continuou indagando Freud, em sua apurada técnica de análise,
que misturava interrogatório policial, curiosidade de velha fofoqueira e
psicologia de confessionário.
– Por que você afirmou, dourando a pílula, que bosta e dinheiro são a mesma
coisa. Disse ou não disse?
– Não exatamente – respondeu calmamente Freud. – Eu escrevi, no artigo de 1908,
ipsis litteris, que “nas formas arcaicas de pensamento, nos mitos, nos contos
de fada, nas superstições, no pensamento inconsciente, nos sonhos e na neurose
o dinheiro é intimamente relacionado com sujeira”. Sujeira, e não bosta, mas,
se você quiser, pode trocar sujeira por bosta. Dá no mesmo.
O Tio Patinhas refletiu.
O Tio Patinhas baixou o revólver. O Tio Patinhas tentou entender aquele
emaranhado de palavras. “Diabo”, pensou ele, “de finanças eu dou conta, mas
esse palavreado erudito está além da minha compreensão”.
– Vamos deixar de conversa mole – disse o notável financista. – Não foi isso
que nós entendemos. O que ficou claro pra todos nós é que banqueiros vivem
mergulhados em dinheiro, que para você é o mesmo que bosta!
NADANDO EM DINHEIRO
Como todos os leitores de histórias em quadrinhos sabem, o Tio Patinhas adora
um gostoso banho matinal no cofre forte, quando mergulha em toneladas de moedas
de ouro, prata, platina, alumínio e cobre.
O que então se deve concluir?
1) Que o Tio Patinhas nada em bosta?
2) Que todos os banqueiros do mundo, mergulhando literalmente o dia inteiro em
dinheiro, mergulham em bosta metaforicamente o dia inteiro?
3) Que vida de banqueiro é uma bosta só?
Freud tirou o charuto da boca, verificou se a ponta continuava acesa, repôs o
charuto na boca, e continuou arengando, como bom profissional que era.
– Veja bem, meu amigo – argumentou ele, pacientemente. – Vamos supor que de
fato dinheiro seja uma forma de bosta e que todos os banqueiros do mundo vivam
mergulhados em dinheiro, portanto em bosta. O que tem isso de errado?
– Tem muito de errado! – berrou o banqueiro erguendo o revólver com pulinhos de
pura irritação. – Você quis sugerir que todos nós, que gostamos de acumular,
que gostamos de ganhar dinheiro, que detestamos gastar, somos uns bostas.
– Mas o que é isso, meu amigo? – ponderou Freud. – Eu jamais sugeri isso.
Apenas argumentei que, na fase anal, toda criança vê sua própria bosta como
propriedade e...
– Pois não é a mesma coisa? – interrompeu impertinente o Tio Patinhas.
MITOLOGIA APLICADA
Freud suspirou fundo, olhando longamente o velho banqueiro emplumado, digno
representante da FEINHOBAN. Estava difícil escapar daquelas balas calibre 38 e
de tão tosco raciocínio, mas não custava tentar.
– Não, não é a mesma coisa – respondeu Freud. – Em outra passagem, veja bem, eu
escrevi que “a defecação proporciona a primeira oportunidade em que a criança
deve decidir entre uma atitude narcísica e uma atitude de amor objetal”. Isso
quer dizer que, entre Narciso e Midas, os banqueiros escolhem Midas. Nada mais
claro.
– Claro de jeito nenhum – continuou esbravejando o irritável banqueiro. – Midas
não é aquele sujeito antigo que tudo que tocava virava ouro?
Freud limitou-se a balançar a cabeça, concordando.
O Tio Patinhas apontou e atirou seis vezes. Duas balas acertaram o alvo: uma no
dedo mindinho da mão direita, outra na ponta da orelha esquerda.
O Tio Patinhas jogou longe o revólver e voou pela janela. A secretária que
entrou em seguida ligou para o hospital, mas nem era preciso, pois Freud
continuou sentado no divã, fumando e pensando com seus botões: “Mas por que os
banqueiros se sentiram tão ofendidos? Será que não gostam de ouvir a verdade?”.
O problema de Freud, como o de todo intelectual, era confundir alhos com
bugalhos, isto é, teoria com prática. Mas com o tempo até ele aprendeu a se
comportar, e nunca mais falou mal de nenhum multimilionário, fosse banqueiro,
industrial ou um simples intermediário arrecadador de propinas e de
contribuições variegadas.