Por LUCIANO MARTINS COSTA - Via Observatório da Imprensa -
Os jornais de segunda-feira (9/3) fornecem um material precioso para a
análise do processo que vimos observando, cuja principal característica é
uma ruptura entre o chamado ecossistema midiático e o mundo real. O
noticiário e os penduricalhos de opiniões que tentam lhe dar sustentação
têm como fato gerador o pronunciamento da presidente da República em
rede nacional da TV, mas o que sai nos jornais com maior destaque é a
reação de protesto que partiu das janelas de apartamentos nos bairros
onde se encastelam as classes de renda média e alta das grandes cidades.
A presidente tenta seguir o protocolo que recomenda informar a
população sobre as medidas econômicas que o governo está adotando – boa
parte das quais foi insistentemente defendida pela imprensa antes de se
tornar decisão de governo. No entanto, não há uma conexão entre o
conteúdo do ato oficial e as manifestações de ódio e intolerância que se
ouviram na noite de domingo (8). Mesmo que a presidente estivesse
anunciando, por exemplo, que o custo das mensalidades nas escolas
privadas poderia ser debitado integralmente do imposto de renda, ela
seria vaiada e xingada com a mesma intensidade.
Há uma forte simbologia na imagem do cidadão que dá as costas para a
tela da televisão, no momento em que a mensagem é endereçada, e põe a
cabeça para fora da janela ou sai à sacada do apartamento para dizer que
é contra. Contra o que? Contra as medidas anunciadas? Não se pode
responder que sim, porque quem estava protestando não podia ouvir o que
anunciava a presidente.
Essa simbologia mostra que nesses apartamentos, curiosamente, a
realidade estava falando sozinha na tela da TV, enquanto a perturbação
emocional, diligentemente cultivada pela mídia nos últimos meses,
produzia um novo fato político. O fato é a radicalização das camadas da
sociedade mais expostas ao discurso da mídia, com base num conteúdo
jornalístico construído para produzir exatamente esse estado de
espírito.
Não há como contar o número de pessoas que bateram panelas e gritaram
palavrões, e os jornais são obrigados a admitir que não houve protestos
nos bairros onde moram os menos afortunados.
A língua culta dos midiotas
Esse é um aspecto que não será lido na imprensa: o jornalismo
brasileiro é feito para aqueles que nunca se conformaram com as
políticas de redução das desigualdades sociais. Ainda que tais políticas
tenham beneficiado também as classes de renda mais alta, não apenas
pela oportunidade de multiplicação das fortunas criada pela nova escala
de negócios, aquela fração da sociedade brasileira mimada pelas
políticas segregacionistas resiste a admitir a companhia dos emergentes
na fila do aeroporto, no navio de cruzeiro ou nos empórios dos melhores
bairros.
O jornalismo brasileiro é uma máquina de fabricar midiotas. O Globo,
por exemplo, afirma na primeira página que “enquanto a presidente pede
paciência em pronunciamento, população reage”. Para o jornal carioca, a
população brasileira se resume aos moradores de bairros como o Leblon e a
Barra da Tijuca.
A Folha de S.Paulo compara a circunstância ao clima que
antecedeu o impeachment de Fernando Collor de Mello, e um de seus
diretores afirma que o Brasil vive uma “debacle econômica”.
O leitor que não reflete sobre aquilo que lê, compra pelo que lhe é
oferecido tanto a ideia de que a “população brasileira” está contida nas
regiões onde se concentra o bem-estar, quanto a tese de que a economia
nacional foi para o abismo.
O ruído das panelas e os palavrões na boca dos privilegiados são a
língua culta da ignorância, mas não se pode condenar liminarmente quem
não teve a oportunidade de se educar para a cidadania. A midiotice é
moléstia que afeta principalmente a consciência social do paciente. Mas a
circunstância não facilita apreciações sobre essa questão, mesmo porque
nossa produção intelectual em torno de política e sociologia empobreceu
drasticamente desde que a universidade resolveu higienizar o marxismo
dos fundamentos do conflito de classes.
Aqui tratamos das responsabilidades da imprensa, e o episódio serve bem
para ilustrar o que tem sido objeto de nossas observações: a mídia
tradicional tange seu gado – o rebanho dos midiotas – na direção da
irracionalidade.
O ato de bater panelas vazias sempre foi uma expressão daqueles a quem
faltava alimento. Os abastados abestados se apropriam desse símbolo sem
mesmo saber o que significa. Em torno dos edifícios onde os direitos são
medidos pelo valor do metro quadrado, a maioria silenciosa não bate
panelas.
Leia também