Por SANTIAGO ZABALA - Via Outras Palavras -
Há exatos 147 anos, era lançado primeiro livro de “O Capital”. Ao “acusarem” Papa e economista francês de “marxistas”, conservadores confirmam atualidade do filósofo alemão |
A crítica às desigualdades sociais, como exposta no livro O Capital no século XXI,
do francês Thomas Piketty, não é assim tão diferente da visão do Papa
Francisco sobre o capitalismo em sua exortação apostólica Evangelii Gaudium (do latim, “A alegria do Evangelho”), publicada em 2013.
O jornal inglês Financial Times tenta provar que a teoria do
economista francês é incorreta. Além disso, conservadores como Rush
Limbaugh e outros acusam tanto o economista quanto o sumo pontífice de
marxismo, sinônimo de estar errado na opinião do comentarista político,
obviamente. Entretanto, ser rotulado de marxista não é uma ofensa. É
apenas um sinal de que Marx retornou das reminiscências do comunismo
para convidar acadêmicos, ativistas e até clérigos a buscar em seus
escritos soluções para recessão global contemporânea.
Embora Piketty e o Papa Francisco (antes Cardinal Jorge Mario
Bergolio) neguem qualquer interesse ou fé no marxismo, ambos não serão
perdoados tão cedo. Porque, afinal, reconhecer as falhas capitalismo é
como emitir um sinal de alerta máximo em nosso estado de exceção.
O lado bom desse alerta, porém, é a possibilidade de congregar
pessoas preocupadas com questões vitais como distribuição de renda,
saúde e educação, reivindicações vistas na União de Nações
Sul-Americanas (UNASUR) e no recente movimento Occupy.
O Papa pede redistribuição, e Piketty sugere um modo de pôr isso em
prática com uma tributação progressiva global sobre o capital ou grandes
riquezas. E se torna também – indiretamente – o economista papal. Para
explicar por que a solução do economista francês é apropriada para as
preocupações do Papa, é preciso revisitar rapidamente as duas teses.
O mais interessante de Evangelii Gaudium não é o clamor por
uma distribuição de riqueza mais justa, mas sim tal pedido sendo feito a
partir do espírito da Teologia da Libertação, de Gustavo Gutiérrez.
Segundo o Papa Francisco, uma “reforma financeira” é essencial não
apenas “porque o sistema socioeconômico é injusto em sua origem”, mas
também “porque os mecanismos econômicos atuais promovem um consumo
desordenado”. Um consumismo desenfreado somado à desigualdade é uma
combinação nociva à sociedade, na medida em que “os excluídos não são
mais os ‘explorados’, e sim os rejeitados, os que são considerados
redundantes”.
É possível perceber que o Papa coloca em oposição não apenas um
sistema econômico em que a exclusão é possível, mas um em que ela se
tornou a regra, ou melhor, “o resultado de ideologias que defendem a
autonomia absoluta do mercado e da especulação financeira”. Como um
veraz filósofo pós-moderno, Papa Francisco conclui suas observações
destacando como “estamos longe do chamado ‘fim da história’”, na medida
em que o crescimento econômico, incentivado pelo livre mercado, em vez
de proporcionar uma maior prosperidade para todos, aumentou “a corrupção
desmedida e a deplorável sonegação de impostos, que assumiram dimensões
globais”.
Pikkety, ao que parece, apresenta uma justificativa tanto histórica
quanto econômica para a preocupação do Papa sobre uma “economia de
exclusão” e sobre “um sistema financeiro que dita regras em vez de
servir à sociedade”. Se o capitalismo se tornou esse sistema econômico
não é simplesmente por sua inclinação natural a uma desigualdade
galopante – tese em que o autor se debruça por meio de uma análise
detalhada da história –, mas sim porque o capitalismo permite que a
concentração de riqueza se perpetue de uma geração à outra (a exemplo da
família real espanhola).
Isso ocorre no seguinte momento: quando “a taxa de retorno sobre o
capital é maior que a taxa de crescimento de renda e produção, o
capitalismo automaticamente cria desigualdades arbitrárias e
insustentáveis que, de forma radical, enfraquece valores meritocráticos,
fundamentais em sociedades democráticas”. O economista francês sugere
então “uma tributação progressiva sobre o capital”, restringindo “o
crescimento ilimitado da desigualdade global, que cresce a um ritmo que
não pode ser mantido em longo prazo e constitui motivo de preocupação
até mesmo para os defensores mais fervorosos do livre mercado”.
Talvez Piketty tenha se tornado o economista de Papa. Não apenas por
apresentar uma solução de provável anuência pelo pontífice, mas também
por se afastar do rigor científico de sua disciplina, isto é, o
determinismo econômico. Mormente, o economista francês acredita que “o
reaparecimento da desigualdade social depois da década de 1980” não foi
consequência de um movimento natural do capitalismo, mas sim de
“recentes decisões políticas em temas relacionados a tributação e fundos
públicos”. O clamor do papa para um sistema financeiro que “sirva à
sociedade em vez de ditar regras” é diametralmente oposto a tais
decisões de quem está no poder. São esses mesmos sujeitos que sempre
evitam as reformas financeiras recomendadas pelos dois líderes. Embora
Pikkety continue a lecionar na França em vez de mudar-se para o
Vaticano, o Papa tem agora um aliado economista durante seu pontificado
em Roma, mesmo com todas as acusações de marxismo. Essas acusações,
portanto, não são apenas necessárias para reunir economistas e a Santa
Sé. Servem também como um marco para conter a aceleração da desigualdade
capitalista para aqueles que são assim acusados, independente da fé ou
da posição social.