Por ANTONIO LUIZ M. C. COSTA - Via Carta Capital -
Os desdobramentos do movimento Euromaidan aprofundam a ruptura entre Moscou e o Ocidente.
A escalada de hostilidade e sanções mútuas entre a
Otan e a Rússia por causa da guerra civil na Ucrânia não é o retorno da
Guerra Fria. Mas é o início do fim da globalização comandada pelo
Ocidente tal como sonhada pelos apologistas do neoliberalismo nos anos
1990. O dar de ombros de Vladimir Putin ante a expulsão do clube fechado
das grandes potências capitalistas e a ameaça da Ucrânia de proibir o
trânsito do gás russo por seu território fecham o período marcado pela
construção da rede de dutos entre os campos de gás russos e as
indústrias da Europa Ocidental a partir de 1992 e a admissão da Rússia
de Boris Yeltsin no G-8, em 1998, quando se acreditava na Doutrina
Thomas Friedman, segundo a qual países que abrem franquias do McDonald’s
em seu território não entram em guerra uns com os outros.
As sementes do fim foram plantadas, porém, nos próprios
anos 1990. Além de esquecer a promessa de apoiar a Rússia pós-soviética
com um “plano Marshall”, Bill Clinton tomou três medidas decisivas para
preparar a embrulhada na qual o mundo está hoje metido. A primeira foi a
ruptura da promessa feita por Bush pai a Mikhail Gorbachev (em 1990) de
não ampliar a Otan para o Ocidente, que Clinton anunciou na campanha
eleitoral de 1996 e efetivou em 1999 com a incorporação da Polônia,
República Tcheca e Hungria à organização, logo seguidas por outros
países próximos à fronteira russa. A segunda foi a intervenção sem
aprovação da ONU no Kosovo, de 1998, pois abriu um precedente para
outras intervenções unilaterais e para legitimar movimentos
separatistas. A terceira foi a revogação, em 1999, das leis do New Deal
que regulamentavam as atividades bancárias e as fusões e incorporações
dentro do setor, o que abriu caminho à crise financeira de 2008 e
aprofundou a divergência de interesses entre o capital financeiro
ocidental e as nações emergentes do Sul e do Oriente.
O rearmamento de Moscou e sua crescente assertividade ante
as tentativas de intervenção dos EUA no Oriente Médio e na Europa
Oriental, a reaproximação estratégica com a China (também em fase de
expansão de seus recursos militares e esfera de influência) e a
articulação dos BRICS para oferecer opções ao sistema dólar-FMI-Banco
Mundial são consequências lógicas desses passos e a desajeitada e mal
disfarçada tentativa de incorporar a Ucrânia ao sistema da Otan e da
União Europeia foi a gota d’água que entornou o copo.
Continua inimaginável o retorno a um planeta dividido em
dois mundos estanques. As economias da China e Rússia, de um lado, e dos
EUA, Europa e Japão de outro, tornaram-se interdependentes demais para
um retorno ao quase isolamento comercial mútuo dos tempos do pós-Guerra.
Mas o momento aponta para um realinhamento importante de fluxos
comerciais e políticas econômicas, que conduzem a uma realidade menos
complacente para com as transnacionais ocidentais, em que o fluxo de
capitais e mercadorias será condicionado por blocos geopolíticos e pelo
esforço consciente dos emergentes para quebrar a hegemonia do Ocidente
em favor de um mundo mais policêntrico.
Às sanções
norte-americanas, europeias, japonesas e australianas de março e abril,
quase simbólicas, o Kremlin respondeu com um acordo bilionário de
exportação de gás à China, para advertir que depende menos da Europa do
que os europeus da Rússia. Quando a guerra civil na Ucrânia se declarou,
foram impostas (a partir de 17 de julho) sanções mais reais, incluindo o
bloqueio de transações e venda de equipamentos a toda a indústria
bélica russa e aos principais bancos e empresas de energia estatais. E,
desta vez, a resposta russa foi um embargo às importações agropecuárias
de todos esses países, além de bloquear seu espaço aéreo às companhias
ucranianas e ameaçar fazer o mesmo ao Ocidente.
A reação de Putin fecha o mercado russo a
10% das exportações agrícolas e pesqueiras europeias, nada desprezíveis
15 bilhões de dólares anuais (90% das importações russas do setor). No
mesmo dia, seu governo levantou as restrições sanitárias às importações
de carne brasileira e peixe peruano e se reuniu com embaixadores do
Brasil, Argentina, Chile, Equador e Uruguai. “A Argentina gerará as
condições para que o setor privado, com o impulso do Estado, possa
satisfazer a demanda do mercado russo”, anunciou imediatamente o chefe
de gabinete do governo argentino, Jorge Capitanich. É uma oportunidade
de ouro para a pesca e o agronegócio dessas e doutras nações neutras no
conflito, notadamente Israel, Turquia, África do Sul, Suíça e
Bielorrússia. Ao mesmo tempo, golpeia uma economia europeia estagnada em
seu núcleo franco-alemão e à beira de deslizar novamente para a
recessão. Estimou-se que o embargo russo reduzirá em 0,5% o já pífio
crescimento europeu neste e no próximo ano (de 1,1% e 1,5% para 0,6% e
1%), aumentando as tensões internas dentro do bloco.
A União Europeia queixou-se, por meio da
mídia, da falta de “lealdade” dos governos sul-americanos, sem
considerar sua própria e antiga concorrência desleal nesse campo. Nem a
ausência de autênticas razões éticas para países não alinhados tomarem
seu partido. Na Ucrânia, como na Líbia e Síria, trata-se de disputas
cínicas de poder e recursos naturais entre rivais. É verdade que a
maioria dos países da União Europeia (com a exceção cada vez mais
embaraçosa da Hungria) é internamente mais tolerante e democrática do
que a Rússia de Putin, mas na política externa, pretender a
superioridade moral do Ocidente é pura hipocrisia.
A guerra civil iniciada
na Ucrânia logo após a eleição presidencial de 25 de maio (mesma data
da eleição parlamentar europeia) forçou 344 mil a abandonar suas casas e
deixou, até agora, entre 2 mil e 3 mil mortos, metade dos quais civis.
Além de aparentemente terem derrubado um avião civil da Malaysia
Airlines por engano, os rebeldes pró-russos cometeram execuções
arbitrárias e outros abusos e recebem armas, reforços e assessoria de
Moscou. Nem por isso deixam de ser um movimento autóctone com respaldo
popular no leste do país, onde os laços culturais e econômicos com o
país vizinho são fortes e o viés ultranacionalista, pró-ocidental e
neoliberal do novo regime de Kiev é visto com muita desconfiança.
E é sintomático
da despreocupação com que a mídia e os governos ocidentais aplicam à
vontade o princípio de dois pesos e duas medidas que os mesmos líderes
europeus e norte-americanos que pediram uma intervenção armada contra
Bashar al-Assad por usar aviões e armas pesadas “contra seu próprio
povo”, armar fanáticos cruéis (as milícias shabiha na Síria, as
brigadas de militantes neonazistas do “Setor de Direita” na Ucrânia) e
dificultar o acesso de ajuda humanitária a cidades sitiadas e
bombardeadas aceitam com naturalidade que seus aliados em Kiev façam
precisamente o mesmo, pelas mesmas exatas razões ou pretextos.
É difícil prever o desfecho do conflito
na Ucrânia. Os pró-russos parecem estar cercados e perdendo terreno em
torno de suas capitais, Donetsk e Lugansk. Apesar de a Ucrânia alegar
quase diariamente a invasão de seu território e dizer ter destruído uma
“coluna de blindados russos” em 15 de agosto (o que a Otan não
confirmou), a Rússia não parece disposta a intervir abertamente e é
possível que os rebeldes sofram em breve uma derrota militar decisiva.
Mas as razões da revolta continuam vivas e agravadas pela destruição da
economia do leste e pela situação de milhares de refugiados, o que
praticamente garantem uma tensão duradoura dentro do país, entre a
Ucrânia e a Rússia e entre o Ocidente e os emergentes, com prováveis
efeitos de longo prazo nas configurações das alianças comerciais e
tecnológicas mundiais.