Via Le Monde Diplomatique Brasil -
Um país com tamanha diversidade e complexidade como o nosso pede um
leque abrangente de políticas públicas territoriais articuladas, que
abandone a rigidez e consolide a flexibilidade, dialogando com soluções
que a contemporaneidade exige e que os valores modernos, liberais e
fordistas não são mais capazes de suprir.
Segundo dados do IBGE e das prefeituras, a população residente em
favelas e loteamentos irregulares e precários cresce muito mais
rapidamente que a população como um todo em São Paulo e nas principais
metrópoles do país. O número de ocupações de terrenos vazios, prédios
ociosos e baixos de viadutos não para de crescer. Na semana em que
ocorria o Fórum Urbano Mundial promovido sob os auspícios da Agência
UN-Habitat em Medellín, Colômbia, em abril deste ano, os movimentos
sociais urbanos promoveram mais de vinte ocupações de edifícios e
terrenos na cidade de São Paulo e organizaram uma excursão até Brasília
para cobrar do governo federal mais e melhor aplicação de recursos para
as políticas de habitação.
No início de maio, os movimentos de moradia, num ato de cidadania,
pressionaram muito (e enfrentaram a polícia) na porta da Câmara
Municipal de São Paulo para que os vereadores aprovassem em primeira
votação o Projeto de Lei do novo Plano Diretor Estratégico, que prevê a
aplicação de alguns instrumentos importantes para a produção de
habitação social e de uma cidade mais sustentável, equilibrada e
includente nas próximas décadas – uma medida de alerta num período
propício às negociatas que historicamente ocorrem na calada da noite.
No dia 3 de maio, milhares de famílias ocuparam um terreno próximo ao
Estádio do Itaquerão, às vésperas da Copa, e já havia decisão de um juiz
da capital para a reintegração de posse, a pedido da construtora Viver
Empreendimentos, dona da área. Negociações pontuais se seguem lá e em
tantos outros conflitos em torno do problema da moradia. A sociedade
brasileira já tem experiências desse tipo, e sabemos que a força física e
a ação da polícia não vão resolver questões sociais nem o problema do
direito à moradia adequada e bem localizada para todos, como definido
pela Constituição e pelo Estatuto da Cidade.
Foram muitos anos de descaso, ingerência e irresponsabilidade de
diversos governos para que chegássemos a este ponto de severa crise
urbana (e ambiental). Hoje a cidade virou uma mercadoria, e os imóveis
estão sujeitos a verdadeiros leilões, na base do “quem dá mais”. Os
terrenos bem localizados, os lançamentos, as operações urbanas e a
abertura de novas avenidas significam negócios muito rentáveis e
relativamente fáceis de ser desenvolvidos – temos, sim, uma bem-sucedida
indústria de imóveis luxuosos e exclusivos que são produzidos a um
custo individual e social muito alto, paralelamente à produção de uma
cidade real, periférica, informal, onde tudo é mais distante, pobre,
precário e violento.
Por outro lado, nota-se que aos sem-teto estão se unindo artistas,
estudantes, arquitetos, engenheiros, advogados, sociólogos, acadêmicos,
outros cidadãos simpatizantes, todos compreendendo que não há saída
digna que não seja pela porta da reforma urbana. E isso pressupõe
produzir habitação social em quantidade e qualidade em áreas bem
localizadas, inclusive e principalmente no centro expandido (temos
conjuntos exemplares, como a Vila dos Idosos, no Pari, o Madre de Deus,
na Mooca, ou ainda o da Rua Pirineus, nos Campos Elíseos, entre outros);
colocar em prática a Cota Solidariedade (obrigatoriedade de produção de
uma cota de habitação social para os grandes e médios empreendedores na
mesma região do empreendimento); demarcar mais Zonas Especiais de
Interesse Social (áreas prioritárias para produção de habitação para a
população de baixa renda); e realizar Projetos de Locação Social
(produção de habitação social de aluguel de propriedade pública para
grupos específicos, como idosos, população proveniente da rua e dos
albergues, estudantes – na Alemanha, esse tipo de habitação corresponde a
40% de todo o parque residencial). Além, claro dos programas de
urbanização de favelas, reforma de cortiços e produção de habitação pelo
sistema de autogestão ou cogestão, todos já experimentados e exitosos –
sem falar no necessário IPTU progressivo para as propriedades que não
cumprem sua função social.
Nas Américas, há experiências muito positivas de produção em
cooperativas, como aquelas do Uruguai baseadas na autogestão, ajuda
mútua e propriedade coletiva – experiência exitosa que se estendeu a
outros países da região.1 Nos Estados Unidos, na Inglaterra e mais recentemente na Bélgica, o Community Land Trust2
se destaca como uma forma de propriedade associativa que – assim como a
pública, na Locação Social – protege o investimento público da
valorização imobiliária, a qual, com o tempo, tende a expulsar as
famílias originariamente atendidas. Isso porque a experiência empírica
mostra que, nesses processos históricos de produção com subsídios
públicos, alguém quase sempre capitaliza e se apropria individualmente
do investimento público, e este se perde numa espécie de fábrica de
enxugar gelo ou como uma máquina de concentração de renda por meio da
exclusão de um lado e da produção de plus valias urbanas de outro – a lógica do investimento do orçamento público vira, na prática, custeio.
A sociedade brasileira não precisa nem merece conviver com cidades
inviáveis a piorar continuamente, nem assistir a reintegrações de posse
violentas, muito menos conviver com novos Pinheirinhos. A saída não
passa simplesmente pela construção maciça de conjuntos habitacionais nas
periferias e subúrbios distantes onde a terra seria supostamente mais
barata – embora seja necessária uma produção quantitativa para enfrentar
o déficit.
Isso pressupõe fortalecer a esfera pública e qualificar a ação dos
governos. Um país com tamanha diversidade e complexidade como o nosso
pede um leque abrangente de políticas públicas territoriais articuladas,
que abandone a rigidez e consolide a flexibilidade, dialogando com soluções que a contemporaneidade exige e que os valores modernos, liberais e fordistas3 não são mais capazes de suprir.
Estamos maduros para enfrentar uma reforma urbana séria e digna que
nossas cidades e nossa população demandam nas ruas, nas praças, nas
ocupações, nos conselhos. São Paulo deve dar o exemplo. Certamente isso
tem um custo – equivalente à dívida social histórica de nossa sociedade
desigual. Mais alto, porém, será o custo de negligenciá-la e não
promovê-la.
Texto de Francisco Comarú, engenheiro civil e doutor em Saúde Pública, é professor e pró-reitor adjunto da Universidade Federal do ABC.
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1 Gustavo González, La vivienda, entre el derecho y la mercancía. Las formas de propiedad en América Latina, We Effect (Centro Cooperativo Sueco)/Trilce, Montevidéu, 2014.
2 Ver em: www.communitylandtrusts.org.uk.
3 David Harvey, Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural, 6 ed., Loyola, São Paulo, 1996.
2 Ver em: www.communitylandtrusts.org.uk.
3 David Harvey, Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural, 6 ed., Loyola, São Paulo, 1996.