Via Le Monde Diplomatique Brasil -
Cinco vezes vencedor, o Brasil acolhe a Copa do Mundo de futebol num
clima de desencantamento político e fervor artificial. Teatro de uma
expressão desenfreada e por vezes violenta, os estádios, que o sport
business gostaria de pacificar. Algumas associações de torcedores
defendem seu caráter popular.
São Paulo, Brasil, 1o de fevereiro de 2014. Muito
enraivecida, uma centena de torcedores do Corinthians força a entrada no
centro de treinamento de seu time. Eles têm a firme intenção de
castigar dois jogadores, considerados responsáveis por uma série de
derrotas. Os infelizes escapam por pouco à vingança. Quatro dias depois,
em uma partida, choques violentos opuseram dessa vez os próprios
torcedores do clube, uns contra os outros.
“Esses desordeiros representam de 5% a 7% dos integrantes das torcidas
organizadas. Não são torcedores, e sim traficantes de drogas ou
bandidos. Eles são difíceis de eliminar”, analisa friamente Mauricio
Murad, sociólogo brasileiro.1 Dois meses antes, rusgas entre
torcedores do Vasco de Gama e do Atlético Paranaense tinham feito quatro
feridos graves. Desde 1988, 234 amantes do futebol morreram no país.
“Os hooligans estão matando nosso esporte”, declarava Pelé quando era ministro do Esporte, entre 1995 e 1998.2
É possível “eliminar” os elementos incontroláveis para “salvar” o
futebol? No Brasil, alguns sonham imitar o exemplo britânico. De Londres
a Liverpool, passando por Manchester, o sonho dos estádios pacificados
se tornou realidade. Ao preço de deixar de lado os menos afortunados.
A escalada da violência coincidiu com o domínio crescente do dinheiro
sobre o futebol, nos anos 1980. Aos tradicionais cantos de apoio à
equipe, os hooligans preferiam as rixas entre bandos rivais. Do Reino Unido, essa propensão se espalhou por todo o continente europeu.
Para superar o problema, a repressão policial foi menos eficaz que a
construção de novos estádios. Em conformidade com os padrões do esporte
moderno, esses espaços são “orientados para os consumidores de
espetáculo”, como sublinhava o “livro verde do torcedor” enviado em 2010
por três sociólogos à ministra dos Esportes francesa da época, Rama
Yade. Depois que as arquibancadas em pé foram proibidas e os lugares
sentados se generalizaram, o conforto dos espectadores aumentou
consideravelmente. O preço dos ingressos também: em 2013-2014, uma
assinatura anual no Emirates Stadium, a casa do clube londrino Arsenal,
custa no mínimo 1.155 euros. Pior para os torcedores sem dinheiro: quer
sejam hooligans ou não, eles não têm mais os meios de apoiar seu time do coração.3
Nos anos 2000, os clubes principais ingleses foram comprados por
grandes fortunas ou fundos de investimento. O emblemático time do norte
do país, o Manchester United, passou assim para a bandeira
norte-americana. “Don’t pay Glazer!”: nenhum tostão para o
milionário Malcolm Glazer, entoaram então milhares de vozes. Decididos a
preservar a atmosfera familiar do antigo “MU”, os incomodados fundaram o
FC United. Autogerida, a cooperativa “FCU” não brinca com a democracia
participativa. “Em uma assembleia geral anual, a escolha do McDonald’s
como patrocinador foi submetida à votação. Foram 95% dos torcedores a
dizer não ao McDonald’s United”, exulta Vinny Thompson, porta-voz do
modesto clube da sétima divisão, mas dono do seu destino.
Refratários à padronização
Pioneiros da emancipação em relação ao foot business, os
apoiadores do clube da cidade de Swansea (no País de Gales)
experimentaram por sua vez uma via intermediária, a meio caminho entre o
capitalismo e a apropriação coletiva. Em outubro de 2001, o clube, à
beira da falência, foi cedido por 1 libra simbólica a Tony Petty, um
homem de negócios australiano instalado em Londres. Céticos quanto à
capacidade dos novos dirigentes de consertar a situação, 150 torcedores
criaram uma associação. Após recrutar seiscentos adeptos, eles
conferiram mandato ao grupo de pequenos acionistas para encontrar
compradores de confiança. “Ao ir às ruas para exigir a demissão de
Petty, o grupo negociava nos bastidores com um consórcio de empresários
locais ligados ao clube e dispostos a investir de maneira duradoura”,
relata Nigel Hamer, o secretário da associação, com um sorriso canalha.
Cansado de guerra, Petty aceitou em janeiro de 2002 devolver o clube ao
consórcio. O grupo recolheu 50 mil libras graças a uma vaquinha,
adquiriu 20% do capital e ocupou de pleno direito um assento no conselho
da administração. “A fim de evitar a dominação de um só acionista, os
detentores de participações não podem controlar mais de 25% do capital.
Quanto ao posto de administrador reservado aos torcedores, ele não pode
ser suprimido”, esclarece Huw Coze, o representante da associação no
conselho.
Economicamente saneado, o Swansea passou em dez temporadas da
quarta para a primeira divisão. Nas proximidades do estádio, ao qual se chega por um caminho que
margeia um rio, o local de treinamento reflete o modo de crescimento do
clube. “Em vez de especular com seus jogadores, o Swansea investiu 6
milhões de libras nesse equipamento, que será na sequência reservado a
seus jovens”, diz Alan Lewis, encarregado de relações públicas no seio
do grupo. No momento, os profissionais driblam a bola sob o olhar atento
de Huw Jenkins. Cinquentão descontraído, o atual presidente do Swansea
se prepara para uma partida contra o Arsenal. “O lugar reservado aos
torcedores não garante a sobrevivência do clube”, previne.
Nem a moderação salarial, como testemunham os Porsches e Ferraris
estacionados diante da sede do clube. Em nome da competitividade, o
Swansea não se destaca das práticas financeiras do futebol de alto nível
e também paga os salários estratosféricos da primeira divisão. Já a
assinatura anual, por sua vez, custa 459 euros: uma tarifa elevada para
os pequenos orçamentos. “É um compromisso entre as restrições econômicas
e a vontade de permitir que o maior número de pessoas apoie nosso
clube”, pleiteia Lewis.
Nascido no Reino Unido no final dos anos 1990, o Supporters Direct
promove a participação ativa nas instâncias de decisão. “A procura por
resultados imediatos figura entre as principais causas da crise que
ameaça a existência de numerosos clubes. O Supporters Direct preconiza
um desenvolvimento a longo prazo”, explica Antonia Hagemann, sua
presidente no âmbito europeu. A associação conta com membros em 22
países, notadamente na Alemanha e na Espanha, onde o papel de
contrapoder dos torcedores, outrora eminente, é insidiosamente
questionado.
Dotados de um estatuto associativo, os clubes germânicos funcionam
segundo o sistema do “50 + 1”, que permite aos torcedores dispor de
direitos de voto majoritários. Somente o Wolfsburg e o Leverkusen, que
pertencem inteiramente um à Volkswagen e o outro à Bayer, escapam desse
direito de intervenção.
Invocando o princípio da equidade, o presidente
do Hanover reclamou a possibilidade de comprar a totalidade de seu
clube. O tribunal arbitral do esporte lhe deu razão, em 30 de agosto de
2011, anunciando o fim desse modelo atípico. “De fato, a regra do 50 + 1
não existe mais desde esse julgamento. As marcas vão agora utilizar
nossos clubes como simples ferramentas publicitárias”, teme Jens Wagner,
porta-voz da associação dos torcedores do Hamburgo. Ávida de
publicidade, a Red Bull saiu na frente com a criação em 2009 do
RasenBall Leipzig. A germanização (aproximativa) de seu nome lhe
permitiu contornar a legislação em vigor, que proíbe as marcas.
Refratário à padronização desvairada do futebol alemão, o outro clube
de Hamburgo continua fiel à sua cultura alternativa radical. O FC Sankt
Pauli reflete o estado de espírito desafiador de um bairro conhecido por
seu distrito vermelho e sua comunidade punk. Antirracista e
antifascista pelos termos de seu estatuto, ele se agarra a seu ideal
progressista, deixado a vegetar na segunda divisão. E sem pensar em
rebatizar seu estádio, o Millerntor, com o nome de um patrocinador. É
verdade que, pela primeira vez, quando dos trabalhos de renovação,
construíram-se ali espaços reservados às personalidades; mas na nova
arquibancada, definitivamente popular, dos 12 mil lugares, 10 mil são em
pé. E os ingressos mais caros custam 7 euros.
Na Espanha, os torcedores viram seu poder seriamente corroído a partir
de 1992. O governo socialista de Felipe González obrigou os clubes a se
transformarem em sociedades anônimas com objeto esportivo, abolindo
assim o regime dos sócios. Com cada um detendo uma parte do clube, os
sócios eram até então coletivamente proprietários. Como tal, elegiam
seus dirigentes. Único na Europa, esse funcionamento igualitário – um
sócio, uma voz – constituiu a norma durante décadas. Apenas quatro
clubes puderam conservar suas antigas regras: o Barcelona, o Real
Madrid, o Athletic Bilbao e o Osasuna.
Os inspiradores da lei de 1990 viam na preeminência dos sócios um freio
ao investimento. Ao substituí-los por acionistas estáveis, eles
pretendiam tornar os clubes mais perenes. Mas não foi isso o que
aconteceu: ao contrário, o desejo de atrair a qualquer preço os melhores
jogadores conduziu a um endividamento maciço. Muitos clubes correm o
risco de rebaixamento ou mesmo de liquidação. “Cedendo à loucura dos
grandes, o Atlético de Madrid multiplicou sua dívida por dez. Para
compensar, triplicou o preço dos ingressos”,afirma desolado Emilio
Abejón, porta-voz do Señales de Humo (“Sinais de Fumaça”). Esse grupo de
torcedores batalha há dez anos contra os acionistas do clube madrileno.
Ele os acusa de monopolização fraudulenta, confirmada por vários
julgamentos.
Presidente eleito pelos sócios em 1987, Jesús Gil, antigo prefeito
ultraliberal e xenófobo de Marbella, morto em 2004, tinha tomado conta
do Atlético no momento de sua mutação para sociedade anônima, em
setembro de 1991. Com a ajuda de seu associado Enrique Cerezo, ele tinha
conquistado 90% das participações sem desembolsar uma única peseta, e
isso totalmente na ilegalidade. Como os fatos foram prescritos, ele
evitou a prisão, tal como Cerezo, que lhe sucedeu à testa do clube.
Em 4 de fevereiro de 2014, no entanto, o Tribunal Supremo espanhol
anulou um aumento de capital irregular. Resultado: Cerezo e a família
poderiam perder a maioria. “Isso abriu caminho para a eleição
de um novo conselho administrativo pelos 20 mil acionistas
minoritários”, comenta, pleno de esperança, Abejón. Esboço de uma forma
de torcer não violenta e democrática?
BOX: Uma força adicional para as revoltas políticas
“Nós convocamos todos aqueles que ainda
não o fizeram a participar da defesa de Kiev contra os traidores do
governo. Por nossa cidade, nosso país, nossa honra!”1
Na Vkontakte, a principal rede social russa, em 21 de janeiro,
torcedores do Dínamo de Kiev convidavam seus companheiros a se juntar às
manifestações de Maidan, a Praça da Independência. Logo, dezesseis
outros grupos de ultras, provenientes de todas as regiões do país, aí
incluídas aquelas favoráveis ao presidente Viktor Yanukovich,
convergiram para o epicentro da rebelião. Eles se encontram
principalmente no grupo ultranacionalista Praviy Sektor (“Setor
Direita”).
Em Kiev em 2014, como no Cairo em 2011 e em Istambul em 2013, os
torcedores apoiaram as insurreições, sem que se pudesse distinguir
nesses diversos envolvimentos a menor coerência ideológica. “Sem os
ultras, a revolução contra [o presidente egípcio Hosni] Mubarak
provavelmente não teria ocorrido”, analisa o jornalista James Dorsey.2
Escolados nos confrontos com a polícia depois das partidas, eles
levaram sua preciosa experiência aos aprendizes manifestantes. Ponta de
lança do movimento ultra no Egito, os Ahlawy, que torcem pelo Al-Ahly (o
Nacional), o maior clube do Cairo, e os White Knights (“Cavaleiros
Brancos”) do Zamalek estabeleceram uma trégua para unir forças contra o
regime. “Esses grupos surgiram em 2007 para fazer um contrapeso às ligas
de torcedores próximos dos dirigentes de clube, eles próprios ligados
ao regime”, explica a pesquisadora Chaymaa Hassabo.
Seu slogan “Todos os policiais são filhos da mãe” lhes vale uma forte
hostilidade dos interessados e uma grande popularidade entre os jovens.
Ferozmente independentes, eles pagaram um pesado tributo nos combates de
rua em torno da Praça Tahrir. Mas o Conselho Supremo das Forças Armadas
(CSFA) tentou romper sua convergência e brincou com fogo no drama de
Port-Said. No dia 1o de fevereiro de 2012, os
torcedores locais do Al-Masry, proferindo slogans favoráveis aos
militares, agrediram seus rivais do Al-Ahly. As forças da ordem se
mostraram estranhamente passivas. Balanço: 74 mortos e centenas de
feridos. Segundo numerosos testemunhos, havia policiais infiltrados
entre os torcedores de Port-Said.
Depois da revolta da Praça Taksim, em Istambul, o Executivo turco
também ficou tentado a dominar os grupos ultras. Estes desempenharam um
papel central durante os quinze dias de manifestações e enfrentamentos
de junho de 2013. Na primeira fileira se encontrava o grupo Carçi
(“Bazar”), dos torcedores ferrenhos do clube Besiktas de Istambul, que
reivindicam ideias anarquistas, favoráveis à ecologia e kemalistas.3
Criado no dia seguinte ao golpe de Estado militar de 1980, ele se
beneficiou por longo tempo de uma relativa clemência por parte das
autoridades. “Os estádios constituíam então um dos raros espaços de
livre expressão”, conta o sociólogo Adrien Battini. Mas, desde o
desencadeamento do movimento de contestação contra os projetos urbanos
do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan, o governo proibiu ali as
bandeirolas de times.
*Texto de David Garcia, jornalista, é autor de Histoire secrète de l’OM[História secreta do Olympique de Marselha], Flammarion, Paris, 2013.
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1-L’Équipe, Paris, 12 fev. 2014.
2-Pierre Godon, “Pourquoi les violences entre supporters au Brésil
n’ont rien à voir avec la Coupe du monde” [Por que a violência entre os
torcedores brasileiros nada tem a ver com a Copa do Mundo], France TV
Info, 11 dez. 2013.
3-A mesma evolução ocorreu nos estádios de beisebol dos Estados
Unidos. Ler Richard A. Keiser, “Sportifs de salon” [Esportistas de
salão], Le Monde Diplomatique, jul. 2008.
BOX
1-Thibault Marchand, “Les ultras, nouveaux héros de la ‘révolution’
ukrainienne” [Os ultras, novos heróis da “revolução” ucraniana], 7 fev.
2014.
2-James M. Dorsey, The turbulent world of Middle East soccer[O turbulento mundo do futebol do Oriente Médio], Hurst, Londres, 2014.
3-Do nome de Mustapha Kemal Ataturk, fundador em 1923 da República da Turquia.