Via Outras Palavras -
Brasil organiza torneio no momento exato em que mídia ocidental,
ressentida, tenta demonizar BRICS. Mas países do Sul serão capazes de
propor ordem global alternativa?
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Garrincha prepara-se para driblar, na Copa do Mundo da Suécia, em 1958. |
Numa das imagens que, até aqui, definem a Copa do Mundo, vê-se a Mannschaft alemã
– a seleção alemã de futebol – confraternizando com índios pataxó, a
poucas centenas de metros de distância de onde o Brasil foi
“descoberto”, em 1500. Praticamente, um redescobrimento dos trópicos
exóticos.
E há também a seleção inglesa, deitando e rolando à beira-mar, numa
base militar, com o Pão de Açúcar como deslumbrante pano de fundo, sob
uma parafernália de equipamentos e respectivo especialista científico em
umidade e ventiladores industriais (afinal, haverá o “Duelo na Selva”
contra a Itália, no próximo sábado, “nas profundezas da Floresta
Tropical Amazônica”, como dizem tabloides britânicos).
A Copa do Mundo – o maior espetáculo da Terra – começa no momento em
que uma incansável campanha de propaganda de demonização contra-China e
contra-Rússia, inventada no Ocidente (estados-clientes incluídos), fez
subir ao topo os níveis de histeria universal.
Significa que os BRICS estão no centro do alvo; no caso do Brasil, é a
potência emergente localizada estrategicamente sobre a parte mais rica
da floresta tropical amazônica, em tempos em que uma integração
progressista da América Latina ousou reduzir a papel higiênico a
Doutrina Monroe.
Nos anos recentes, o Brasil tirou pelo menos 30 milhões de pessoas,
da miséria. A China investe em atenção pública à saúde e à educação. A
Rússia recusa-se a se deixar abusar, como nos anos de Ieltsin, o bêbado.
Nos anos recentes, a Copa do Mundo tem sido assunto, sempre, de países
BRICS: África do Sul em 2010, Brasil agora, e Rússia em 2018. Qatar em
2022 – como acontece sempre – parece mais um programa de chantagem
movido a petrodólares do Golfo, que saiu pela culatra.
É interessante verificar como a City de Londres – que ama o dinheiro
russo, anseia por investimentos chineses e tem uma quedinha pelo poder soft do
Brasil – está analisando o quadro.[1] Com um toque de humor britânico,
poderiam facilmente interpretar o Duelo na Selva, como a OTAN combatendo
na muito ambicionada floresta tropical (pensem nas guerras da água que
virão em futuro próximo).
Aquela outra Copa do Mundo
E então, apenas dois dias depois de iniciada a Copa do Mundo, a
Bolívia, vizinha do Brasil, estará hospedando nada menos que uma reunião
de cúpula do G-77+China. Na prática, é reunião das 133 nações-membro da
ONU, presidida pelo presidente Evo Morales, uma espécie de primo andino
distante dos Pataxós que tanto fascinaram os alemães.
Os excepcionalistas norte-americanos estão furiosos, porque os BRICS
estão conduzindo a transição na direção de um mundo multipolar – que já
existe no futebol (pense em Espanha, Alemanha, Itália, de um lado; e
Brasil, Argentina e Uruguai, do outro). E tem a ver também com promover o
futebol, com uma espécie de contragolpe Sul-Sul à hegemonia do norte
industrializado. Brasil, China e Rússia, com suas diferentes
estratégias, todos apostam em mais integração Sul-Sul – do Banco do Sul,
ao banco de desenvolvimento dos BRICS, em construção (há reunião de
cúpula dos BRICS, crucialmente importante, mês que vem, em Brasília), na
via para um sistema mais igualitário que, idealmente, poderia ser
financiado por uma porcentagem da dívida externa, uma porcentagem dos
gastos militares e um imposto global sobre transações financeiras
especulativas.
E sempre vale a pena recordar que o G-77 relaciona-se descolonização;
nada de Império com bases militares em todo o mundo; nada de
interferência do complexo orwelliano/Panopticon da Agência de Segurança
Nacional dos EUA no Sul Global.
Agora comparem tudo isso com a Copa do Mundo Adidas Coca-Cola Hyundai
Kia Motors Emirates Sony Visa Anheuser-Busch InBev (Budweiser) Castrol
Continental Johnson & Johnson McDonald’s Itau FIFA, festa e
entretenimento de 2014-Brasil, que a bíblia da indústria, AdvertisingAge apresentou como “umSuper Bowl todos os dias, o mês inteiro”.[2]
Em firme oposição, há uma coorte de movimentos Sul-Sul sociais e de
solidariedade, que denunciam tudo que, de ruim, esteja envolvido na
super empreitada, de neocolonização hardcore a furiosa criminalização dos mais pobres.
E entre esses movimentos, não surpreendentemente, está um ícone do
Sul Global, Diego Maradona. O craque argentino disse essa semana que “a
FIFA lucra 4 bilhões de dólares (da Copa) e a nação campeã só ganha 35
milhões. Não está certo. É a empresa desfechando golpe mortal contra o
futebol”.
Futebol é guerra
Muito se tem ouvido sobre o paralelo entre a globalização
hiper-capitalista – como se vê bem graficamente na Copa do Mundo e nos
meganegócios do futebol contemporâneo – e o nacionalismo.
Ora, o mundo não é e jamais será plano. É um Himalaia/Pamir/Hindu
Kush de diferentes altitudes da desigualdade, exposto a avalanches de
neve, de comércio, trocas, fluxos de imigrantes e terremotos
tecnológicos. Nada disso desfaz os tecidos/fibras nacionais. Ainda é
“nós” contra “eles”, com o Sul Global a definir norte-americanos e
europeus como “gringos”, tanto quanto levas do Norte industrializado a
patrocinar/lucrar no/do “exótico” Sul Global.
Nada há de pós-nação ou pós-nacional, na Copa do Mundo. No terreno da geopolítica mais hardcore,
a supercentralizada União Europeia vai-se fragmentando sob o peso de um
bando de partidos nacionalistas de direita ou de extrema-direita; no
futebol, a maior diferença, na comparação com a geopolíticahardcore,
é que não há só uma potência excepcionalista, mas um punhado, de
Espanha ao Brasil, de Alemanha a Itália, de Argentina a França.
Rinus Michels, técnico do “Carrossel Holandês”, seleção nacional que
deslumbrou o mundo em 1974 (mas não levou a taça), disse certa vez que
futebol é guerra (como Samuel Fuller, diretor de cinema e gênio
solitário, que disse que o cinema é um campo de batalha). A Copa do
Mundo é guerra por outros meios; um duelo oficial, permitido,
ritualizado, entre nacionalismos. É questão, só, de escolher sua
tribo; só depois que sua tribo já tiver saído da competição, escolha
uma tribo substituta.
Novo jeito de jogar bola?
Brasil, justamente elogiado como Terra do Futebol, é também líder
mundial na redução das emissões de carbono, segundo pesquisa
recentemente publicada na revista Science – e simultaneamente
conseguiu aumentar a produção agrícola, ao mesmo tempo em que diminuiu o
desmatamento, salvando mais florestas.
Mas, como sempre em tudo que tenha a ver com Brasil e Copa do Mundo,
tudo se misturou – metáfora ao vivo do típico conjunto variado de
problemas que o Sul Global tem de enfrentar. A presidenta Dilma Rousseff
do Brasil foi forçada a apelar ao estereótipo do brasileiro “homem
cordial”, e falou muito de tolerância, diversidade, necessidade de
diálogo e até de sustentabilidade, tanto quanto condenou o racismo e os
preconceitos, para exortar a população a dar um tempo nas dificuldades
locais e do dia a dia, para receber bem uma legião de visitantes
estrangeiros.
Quase desnecessário, se se considera que o brasileiro médio é
naturalmente caloroso e muito amigável; mas o demônio está nos detalhes –
por exemplo, em pelo menos 200 mil pessoas deslocadas de onde moravam,
ou, no mínimo, ameaçadas de expulsão, para dar lugar a grandes obras
para aumentar a “mobilidade urbana”. OK. Só 10% dessas obras foram
concluídas, em vários casos por culpa da corrupção massiva. No Rio de
Janeiro, não se investiu um único real num sistema de transportes
caótico usado pelo crescente proletariado das periferias urbanas.
Lula, o ex-presidente ainda super, super, super popular, disse,
quando estava na presidência, em 2009, que não seria gasto nenhum
dinheiro de impostos, na Copa do Mundo. De fato, não, diretamente. Os
financiamentos saíram do BNDES, Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico, que empresta dinheiro a bancos. E as empresas que construíram
os novos estádios também se beneficiaram de várias isenções de
impostos.
Resumo da história é que o governo da presidenta Dilma acabou
perdendo a batalha ‘midiática’. Várias vezes a presidenta teve de
explicar que a Copa custaria o correspondente a uma pequena fração do
que é investido em saúde e educação (tema sobre o qual ainda cabe
discussão). Pode dizer que metade da população brasileira ou não
entendeu ou não foi convencida.
E nada garante, até agora, que uma vitória do Brasil na Copa do Mundo
garanta automaticamente a re-eleição da presidenta Rousseff.[3]
Mas é preciso dizer que as recentes ondas de protesto, onda após
onda, começaram de fato antes do governo da presidenta Rousseff. É como
se todos esses diversos movimentos sociais estivessem manifestando
agora, concentradamente, o mais radical e utópico dos desejos: apagar,
de uma só varrida, séculos de injustiças perpetradas pelas elites
brasileiras notoriamente rapinantes e arrogantes e ignorantes – as quais
mesmas elites sempre implementaram políticas de total exclusão política
e econômica, baseadas na mais abjeta segregação racial e de classe.
Significa que o drama todo não é simplesmente sobre tendências
“antineoliberais” ou “anticapitalistas”. Vai muito além do nacionalismo.
E bem pode ser muito mais profundo e importante que um manual de
revolução que use o futebol como pretexto. Seja qual for o resultado
dessa guerra que se trava em torno do futebol, mesmo assim o Brasil
ainda poderá ensinar boa lição ao todo o Sul Global.
Na vitória, ou mesmo numa derrota gloriosa, talvez o Brasil encontre a
estamina necessária para tentar uma nova abertura estratégica – um novo
modo, novo, não arrogante, não neocolonial, não armado, não
excepcionalista de liderar e usar o poder, para construir alianças e
firmar grandes acordos geopolíticos em mundo multipolar. Um jeito novo
de jogar o jogo. Que comece, então, o Novo Grande Jogo.
*Texto de Pepe Escobar | Tradução: Vila Vudu.
[3] http://www.theguardian.com/football/2014/jun/08/brazils-politicians-banking-on-world-cup-victory-to-help-soothe-unrest [Mas, sinceramente, amado Pepe Escobar, e muito cá entre nós: essa matéria do Guardian é uma merda, e o livro do cara-lá TAMBÉM é uma merda (NTs)]