Via Portal Fórum -
O senador haitiano Jean-Charles Moise esteve esta semana no
Brasil para reforçar a exigência da retirada de todas as tropas da ONU
no Haiti, lideradas por soldados brasileiros.
Quando o Brasil foi selecionado pelo Conselho de Segurança da ONU
para liderar o Minustah (Missão das Nações Unidas para Estabilização do
Haiti), o clima foi de euforia. O Brasil finalmente estava sendo
reconhecido como um importante ator no cenário global e definitivamente
dava um passo em direção à tão ambicionada cadeira permanente do
Conselho. Ou assim, nós pensávamos.
Quase 10 anos depois a relação entre o país caribenho e ONU/Brasil
parece estar chegando ao fim e os haitianos estão demonstrando seu
descontentamento em diversas áreas. Nesta semana, a convite do Comitê
“Defender o Haiti é Defender a Nós Mesmos” (ALESP/SP), o senador
haitiano opositor ao governo Jean Charles Moise apresentou, em audiência
pública na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, a exigência da
retirada dos 1.200 soldados brasileiros que compõem a tropa de paz no
Haiti.
O parlamentar já esteve presente em dezembro passado no país, quando entregou ao Senado brasileiro uma
resolução – aprovada unanimemente por senadores do Haiti – para a
retirada paulatina das tropas do Minustah até 28 de maio de 2014. Por
duas vezes já, em setembro de 2011 e maio de 2013, que o senado haitiano
aprova por unanimidade as resoluções exigindo o fim do Minustah.
Entretanto, em sua última reunião com altos oficiais da ONU, foi
expressa a vontade do Conselho de Segurança de manter as tropas até
2016. “Quando um país mantém tropas em outro, sem que este o queira,
estamos diante de uma ocupação. Não existe outra maneira de
chamar”, disse Moise.
Soma-se a isso também o descontentamento haitiano com a ONU por
sua recusa em indenizar as vítimas do surto de cólera que atingiu o país
e que foi, comprovadamente, causada por tropas do Nepal, que compunham
os capacetes-azuis da ONU: os soldados jogavam fora suas fezes em um rio
próximo à base militar deles. Mesmo assim, a Minustah não é o único
alvo da insatisfação haitiana. Na mesma época da visita de Moïse em
dezembro, as ruas da capital Port-au-Prince e de outras cidades foram
tomadas por manifestantes cansados do presidente Michel Martelly, com
protestos exigindo sua renúncia.
Algo que está absolutamente claro é que, seja quais forem os seus
problemas, os haitianos sentem que são eles quem devem resolvê-los e
querem usar de sua auto-determinação a fim de definir seus rumos
internamente e de sua soberania ao dizer que não querem mais a Minustah
no país.
Fórum – Você veio ao Brasil em dezembro passado fazer o mesmo
pedido ao governo brasileiro para a retirada das tropas da ONU. Na
ocasião, estava estipulado que a data limite seria 28 de maio de 2014, o
que é quarta-feira da semana que vem. Essa retirada irá de fato
acontecer?
Jean-Charles Moise – Você sabe que em 2004 tivemos uma crise
política no Haiti. Esta crise foi criada pela própria, autodenominada,
comunidade internacional e para acalmar os haitianos nos disseram que
iriam vir nos ajudar. Fizeram todas as belas promessas do mundo: “vamos
estabilizar politicamente o país, vamos construir escolas, estradas,
ajudar os camponeses”; mas então, passaram-se seis meses e não fizeram
nada, agora já são 10 anos. E, nós haitianos dizemos: 10 anos basta. Por
isso estamos engajados na retirada das tropas da ONU.
Não apenas eles não construíram nada disso, mas fizeram ao contrário:
o povo haitiano é vitima da presença dessas tropas. Veja o problema da
cólera, da violação dos direitos humanos, abusos sexuais também. Por
isso que somos muito claros, exigimos a retirada das tropas. Esta é uma
batalha fácil? Claro que não. Apresentei uma proposta ao Senado do Haiti
e ela foi aprovada por unanimidade por todos os senadores. Votamos essa
resolução em 28 de maio de 2013, na qual exigimos a retirada da
Minustah dentro de um ano. Esse é o nosso trabalho como parlamentar. E o
povo haitiano está a todo o momento indo às ruas para se manifestar
contra a presença das tropas, mas essa não é uma batalha fácil.
Porque as tropas estão lá para proteger os interesses do
imperialismo, por isso é difícil. Todos os países têm interesses no
Haiti, mas nós estamos progredindo nessa batalha. Pela primeira vez, em
dezembro passado, o PT em seu último Congresso Nacional, adotou uma
resolução que falava da retirada das tropas e, pela primeira vez nesta
viagem de agora, a Comissão dos Direitos Humanos do Congresso também
votou por essa retirada. Estabeleceu-se também que o governo brasileiro
era quem deveria tomar a frente na campanha para que todos os países que
têm soldados no Haiti também os retirem.
Encontrei com o presidente [José] Mujica, do Uruguai, e ele
me falou que não teria problema, que em três meses iria trazer de volta
seus soldados – isso no final de 2013. Mas então o governo dos EUA e o
secretário-geral da ONU, Ban-Ki Moon, fizeram pressão no Mujica e ele
adiou a retirada das tropas, após as eleições no Haiti. Então, veja, não
é fácil, mas não iremos desistir.
Fórum – As eleições haitianas estão marcadas para outubro desse
ano, mas parece que o Senado e a Câmara dos Deputados não assinaram a
proposta e não concordam com a eleição. É certo isso?
Moise – Os deputados estão de acordo. Digo, a maioria dos
deputados está de acordo, mas uma parte deles não. No Senado é
diferente. É claro que todos nós queremos eleições, mas não estamos de
acordo com a maneira como essas eleições estão sendo conduzidas.
Temos uma posição muito clara de que o Conselho Eleitoral que irá
organizar as eleições deve ser montado de acordo com a legislação do
Haiti. Os senadores disseram claramente que o comitê eleitoral tem que
organizar as eleições para o dois terços do Senado, assim como para as
administrações locais, o pleito deve ser instituído de acordo com o
artigo 289 da Constituição haitiana de 1987. Estamos dizendo isso porque
o governo quer colocar um conselho eleitoral do seu jeito para poder
fraudar as eleições.
Fórum – Até hoje muitos haitianos contestam a eleição do atual presidente Michel Martelly. Por que?
Moise – Porque o Martelly não estava entre os primeiros
lugares para a ida ao segundo turno. Não deveria nem ter disputado o
segundo turno. Como ele é norte-americano, os EUA o impuseram aos
haitianos e é por isso que ele apóia políticas neoliberais e entrega
nossos recursos minerais a países como os EUA, Canadá e França.
Fórum – Que setores da economia haitiana estão nas mãos de empresas estrangeiras?
Moise – Companhias de minério norte-americanas, francesas e
canadenses. A Digicel, uma empresa anglo-jamaicana também controla
nossas telecomunicações. Eles dominam 80% do mercado de telefonia e de
internet no Haiti.
Fórum – O Conselho de Segurança da ONU disse que
planeja retirar as tropas da Minustah apenas em 2016 – visando ter mais
tempo para treinar cerca de mil policiais haitianos. Vocês podem esperar
tanto tempo assim?
Moise – Não, e essa é uma maneira [da ONU] justificar sua
presença no Haiti. Todo ano tem que se renovar o mandato da Minustah na
ONU. Dois meses antes da decisão desse voto, podíamos constatar o que
acontece por todo o Haiti. Existe um aumento na insegurança no país. Os
sequestros aumentam, as violações aos direitos humanos aumentam, os
roubos aumentam – tudo o que envolve a insegurança no país
coincidentemente aumenta nesse período [de votação]. Eles então redigem a
resolução dizendo: ‘Tendo em vista o aumento no roubo, o aumento no
sequestro, o aumento na violação dos direitos humanos e que a polícia
nacional não tem como prover segurança no país, votamos pela
prorrogação”.
Nós entendemos perfeitamente o jogo que eles fazem. Desde 2004,
tínhamos sim uma policial nacional profissional, então eles disseram que
viriam a nos ajudar por seis meses – para ajudar a polícia. Mas não
fizeram isso em seis meses e agora, 10 anos depois, ainda não
conseguiram. Quando é que eles irão conseguir?
São mentirosos. São “malandros”. Nós exigimos a retirada imediata e
incondicional das tropas da Minustah, pois não estamos em guerra e não
existe guerra civil no Haiti. Então o que justifica a presença deles no
país?
Fórum – Em sua opinião, você acha que o Brasil usou o Haiti como
uma escada para conseguir um assento permanente no Conselho de Segurança
da ONU?
Moise – No começo achamos que era o caso. Mas não tenho como
demonstrar isso, como provar isso. O que posso dizer aos brasileiros é
que suas tropas não podem nos ajudar lá. Queremos a ajuda dos
brasileiros, por isso pedimos que o Brasil substitua seus tanques de
guerra por tratores agrícolas.
*Por Vinicius Gomes.