Via Le Monde Diplomatique Brasil -
A diferença entre a espionagem da ditadura e a de uma grande corporação é
que, no primeiro caso, visavam-se os agentes da crítica e da oposição,
com o intuito de desmantelar a rede da resistência; no segundo, o
objetivo é o público em geral que se quer “proteger” dos efeitos da
crítica.
Uma observação mais atenta permite destacar elementos ainda pouco
discutidos da relação entre o atual modo de operação de grandes
interesses econômicos e as práticas de origem militar correntes no
período de exceção. Estão hoje em curso procedimentos baseados em
lógicas de operação próprias do pensamento militar gestado no período de
exceção, agora aplicados ao controle territorial de áreas requeridas
para a instalação de grandes projetos de investimento. É crescente o
recurso a ações ditas de “inteligência corporativa” aplicadas ao terreno
em que se constroem barragens, polos industriais ou projetos de
mineração, tendo em vista a obtenção de informações sobre comunidades,
movimentos sociais e lideranças locais. Debates recentes motivaram
vários balanços sobre o que se chamou de restos da ditadura: a
militarização das polícias, a impunidade dos torturadores, a desfaçatez
com que bem-falantes altos responsáveis do período de arbítrio, como
Delfim Netto e Celio Borja, usam da liberdade de imprensa para negar que
houve golpe. Trouxe-se à luz também o fato de que grandes interesses
econômicos lucraram com o golpe, apoiaram sua realização e o regime que
dele decorreu, e, em certos casos, financiaram a repressão e a tortura.
Afinal, o golpe foi dado para barrar as mobilizações populares e impedir
a realização de reformas que ameaçavam interesses de corporações
internacionalizadas, da grande propriedade fundiária e do capital
financeiro.
São conhecidas as ações de espionagem sobre movimentos sociais
recentemente reveladas nos casos da hidrelétrica de Belo Monte e do
projeto de duplicação da Estrada de Ferro Carajás. Tais práticas
alimentam-se de um mercado especializado em serviços privados de
vigilância, inteligência e segurança, configurando um processo de
privatização da atividade de espionagem que, nos anos de chumbo, era
operada por agentes da repressão política do regime de exceção.
Ao lado da infiltração de agentes de informação nos movimentos, temos
visto constituir-se uma espécie de “ciência” destinada a enfrentar e
desmobilizar essas organizações: são realizados estudos ditos de “risco
social” para determinar em que medida as populações atingidas pelos
grandes projetos podem vir a gerar risco aos empreendimentos caso venham
a ser, com sucesso, mobilizadas para o debate e o questionamento dos
projetos. Cientistas sociais e comunicadores são contratados para
estudar os grupos atingidos e desenvolver programas de relações
comunitárias. Observa-se, assim, um forte parentesco entre as ações
ditas de “responsabilidade social empresarial” e aquelas conhecidas como
“ações cívico-sociais” das Forças Armadas.
Durante a ditadura, foi criada pelo Exército a estratégia das ações
cívico-sociais, em nome do atendimento a carências das populações
“marginalizadas”. No combate à guerrilha do Araguaia, tais ações foram
executadas por órgãos de inteligência das Forças Armadas.1
Entre os princípios de tais ações encontra-se o requisito do “estudo
minucioso dos valores, crenças, tradições e costumes da população a ser
atendida”.2
Ora, as práticas de assistência social são, em princípio, tão estranhas
aos atores da guerra como aos agentes da exploração mineral, da
produção siderúrgica ou petroquímica, que têm por fim a obtenção de
lucro privado. No entanto, discursos e práticas das Forças Armadas e das
grandes corporações se aproximam no que diz respeito a suas relações
com as populações quando estas ocupam áreas de interesse para suas
respectivas operações. Tudo indica que elas teriam em comum o
vocabulário de uma certa “ciência” – a da chamada “guerra revolucionária
moderna”.
No âmbito militar, a menção a ações de assistência social surge no bojo
das transformações do discurso estratégico verificadas nos anos 1960,
notadamente a partir das análises da derrota do colonialismo francês.
Segundo tais análises, as guerras no Vietnã e na Argélia
diferenciavam-se das anteriores por envolver “tudo que pensa, tudo que
vive, tudo que respira”. Tratando-se de “uma guerra que toma conta das
almas como dos corpos”,3 o teatro de operações seria todo o
território e o essencial seria cortar a possibilidade de que a população
ouça e apoie os movimentos de resistência.4
No âmbito empresarial, as ações de assistência social são parte das
chamadas estratégias de “não mercado”, destinadas a “combater o risco de
instabilidade institucional, que pode afetar seriamente as
oportunidades de negócio”. Visam, assim, nos termos dos administradores
privados, “aumentar as capacidades empresariais de captura de valor, por
meio da gestão de suas interações institucionais, políticas e sociais”5 – interações essas “que são mediadas pelo público”.6 Pesquisadores da área da Antropologia7têm
designado como “políticas de resignação” esses esforços empresariais de
neutralizar a crítica social e o descontentamento popular, procurando
oferecer respostas limitadas por meio de gestos simbólicos de
compensação ou mitigação, aproveitando-se do vazio do Estado na garantia
dos direitos à educação e à saúde. Um representante da grande mineração
afirmou a um jornal econômico: “Antes, os movimentos sociais nos
criticavam por fecharmos a mina e só deixarmos, no local, um grande
buraco. Agora, deixamos também uma escola e um posto de saúde”. Ou seja,
a intenção de desmobilizar os movimentos críticos está na origem mesma
de tais estratégias ditas “sociais”.
As conjunturas são distintas e a diferença entre a espionagem da
ditadura e a de uma grande corporação é que, no primeiro caso,
visavam-se os agentes da crítica e da oposição, com o intuito de
desmantelar a rede da resistência; no segundo, o objetivo é o público em
geral que se quer “proteger” dos efeitos da crítica. No regime político
de exceção, queria-se silenciar os críticos; no regime de exceção
privado das corporações, deseja-se obter elementos para montar programas
eficazes de responsabilidade social, neutralizar a crítica e viabilizar
o controle sobre o território.
É por meio dessa convergência entre as técnicas de controle
territorial, desenvolvidas durante a ditadura, e as ações destinadas a
obter um controle análogo por parte de empresas em grandes projetos de
investimento que o autoritarismo se reproduz e a democracia é corroída
pela base. Pois não são compatíveis com a democracia ações que têm por
objetivo impedir que a população, em geral desatendida, desinformada e
com pouco acesso às esferas decisórias, ouça os movimentos que
problematizam os impactos que grandes projetos exercem sobre suas
condições de vida. Ao menos se entendermos por democracia uma forma de
existência social bem distinta daquela evocada retoricamente pelos
agentes do colonialismo francês e pelos gestores intelectuais da
ditadura brasileira.
*Texto de Henri Acselrad. Professor do Ippur - UFRJ e pesquisador CNPq.
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1-Ação Civil Pública dos Ministérios Públicos Federais do Pará, São Paulo e Distrito Federal, 8 ago. 2011.
2-Exército Brasileiro, Comando de Operações Terrestres, Caderno de instrução, s/l, 2009, p. 2-2.
3-Coronel Lacheroy, Conferência “Guerre Révolutionnaire et Arme
Psychologique” [Guerra revolucionária e arma psicológica], 1957.
4-“Durante a Guerra da Argélia, o Estado-Maior do Exército francês
aderiu definitivamente à doutrina da guerra revolucionária. Sua
obsessão: cortar a Frente de Libertação Nacional de sua retaguarda, quer
dizer, da população.” Cf. entrevista do general Paul Aussaresses a
Marie-Monique Robin, “Escuadrones de la muerte: la doctrina francesa y
el terror en América Latina” [Esquadrões da morte: a doutrina francesa e
o terror na América Latina].
5-Carlos Rufin, Pedro Parada e Esteban Serra, “O paradoxo das
estratégias multidomésticas num mundo global: testemunho das estratégias
de ‘não mercado’ nos países em desenvolvimento”, Revista Brasileira de Gestão de Negócios, v.10, n.26, jan.-mar. 2008, p.63-65.
6-David Baron, “Integrated strategy: market and nonmarket componentes”
[Estratégia integrada: componente do mercado e do não mercado], California Management Review, v.37, n.2, 1995, p.47-65, apud Rufin, Parada e Serra, op. cit., p.65.
7-Peter Benson e Stuart Kirsch, “Capitalism and the politics of resignation” [Capitalismo e a política da resignação], Current Anthropology, v.51, n.4, ago. 2010, p.459-486.