No próximo dia 27 de agosto estarei participando como um dos palestrantes em evento na Câmara dos Deputados, em Brasilia, juntamente com demais companheiros do movimento nacional em defesa da anistia politica, cuja finalidade será rememorar (não há comemoração alguma!) a anistia politica concedida em 1979, que completa 40 anos. Em verdade estaremos lá principalmente para protestar, pois esta anistia é uma luta ainda inconclusa no Brasil, restando muitos perseguidos a serem anistiados, sobretudo operários perseguidos, assim como a lei 6. 683 promulgada pelo General Figueiredo em 28 de agosto de 1979, ainda trouxe incluso dispositivo que também anistiou os crimes denominados de “ conexos “, ou seja: aqueles crimes de tortura praticados por integrantes civis e militares dos órgãos de repressão politica, conforme acabou posteriormente avalizado pelo STF, contra Tratados Internacionais que dizem exatamente o contrário. Em verdade, a lei de anistia de 79 foi uma vitória parcial, ao possibilitar a soltura de parte dos presos políticos e trazer a maioria dos exilados de volta, mas ao mesmo tempo protegeu agentes do regime.
Ocorre que, como uma tentativa de se voltar ao passado de exceção, a situação ficou ainda muito pior no atual Governo de extrema-direita, que não esconde de ninguém a defesa do golpe militar de 1964, cabendo destacar os seguintes retrocessos somente nestes últimos seis meses: 1)-A transferência da Comissão Nacional de Anistia do Ministério da justiça para o Ministério dos Direitos Humanos, mulheres enfraqueceu o seu caráter de órgão de Estado, deslocada para um Ministério sabidamente com ínfimo poder e expressão na Esplanada dos Ministérios; 2)A mudança do regimento interno da Comissão, suprimindo-se recurso de julgamento para o Pleno e restringindo o acesso aos processos é visivelmente um retrocesso em sua estrutura original em funcionamento há mais de 20 anos; 3)A nomeação de do atual Presidente da Comissão, ex-assessor parlamentar de Bolsonaro quando este era Deputado Federal, que notoriamente advogava nos Tribunais contra a Comissão de Anistia e suas decisões; 4)-A nomeação (contestada judicialmente pelo MPF) de Oficiais superiores do Exército brasileiro para o cargo de Conselheiros, ou seja, julgadores da Comissão, com opinião declaradamente contrária á anistia politica e, um destes, confesso admirador do torturador Ustra; 5- A adoção nos julgamentos de trabalhadores perseguidos do conceito de que as greves contra a ditadura militar não foram politicas, bem como os membros de organizações de esquerda são terroristas; 6-A revisão ilegal de diversos julgamentos realizados pela Comissão de Anistia, com base em conceitos pró-regime militar;7- O recente anúncio de não conclusão do Memorial da Anistia em Minas Gerais, conforme deliberado pela Comissão anterior e apoiado por todas as entidades da sociedade civil.
E cumpre dizer que não se diga que as entidades de Anistia não buscaram o diálogo, pois eu mesmo participei de uma Comissão Nacional que reuniu-se em junho deste ano em Brasília com a Senhora Ministra Damares e, nesta oportunidade, expusemos todas nossas criticas e preocupações, apelando para que fosse cessado todo este desmonte da Comissão de Anistia; Além disto, houve reunião com os novos Conselheiros, incluindo os militares, bem como duas audiências publicas no Congresso Nacional, para tentar sensibilizar sobre alguns temas como a questão das greves durante o regime militar, restabelecimento integral dos direitos dos militares cassados e outros aspectos, mas pelo que se depreende do desdobramento dos fatos, tudo isto foi em vão, inócuo, apenas servindo para demonstrar o quanto a diretriz anti-anistia é por parte deste Governo deliberadamente um projeto anti-memória da ditadura militar, no âmbito de sua pregação geral contra os direitos humanos. Mas não é só! Há muito mais prejuízo em vias de votação no Senado Federal, neste momento, para onde seguiu o projeto de Reforma da Previdência, tendo em vista se tratar de mudança no texto constitucional.
Com efeito, o projeto que está no Senado é ainda mais letal para o tema da anistia politica, pois a mudança constitucional que agora se pretende fazer no art. 8 do ADCT ( Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) é muito mais grave e afirmo que provavelmente o maior ataque já ocorrido. Vejamos o porquê disto ? A base de toda regulamentação da anistia política de 1946 a 1988, no Brasil, é o acima citado artigo 8, pelo qual os Constituintes de 1988 deliberaram por conceder anistia politica a todos aqueles perseguidos pelo regime militar de 64 (e inclusive contemplando ás perseguições de 1946 a 1964 também), o que depois resultou na regulamentação da atual lei de anistia no ano de 1992 ( Lei 10. 559/02). Esta lei traz as diversas hipóteses de perseguições , demissões, cassações, punições, enfim, situações a serem contempladas com a declaração de anistia, assim como a concessão de indenizações em favor dos anistiados, que poderá ser em parcela única, ou de prestação mensal continuada. Sobre estas reparações, cabe também aqui dizer que a maioria dos anistiados são, por exemplo, ex-funcionários públicos, ex-operários, ex-bancarios , ex-militares, que, além de muitos destes guardarem em seus corpos as marcas da tortura, em sua maioria absoluta até hoje não conseguiram assegurar do Estado o mesmo rendimento que recebiam quando foram punidos, sobrevivendo de outros trabalhos ou aposentadorias.
Sucede que a atual reforma da previdência propõe mudar a natureza jurídica, antes indenizatória, para doravante previdenciária das verbas de anistia política, através da mudança dos parágrafos 6, 7 8 e 9 do art. 8 do ADCT (Ato das disposições constitucionais transitórias) da Constituição federal de 1988, o que, se aprovado, resultará no seguinte: a) os anistiados passarão a contribuir para a Seguridade Social, através de uma alíquota que será aplicada sobre suas pensões mensais, de forma cumulativa com outras contribuições que o anistiado já esteja obrigado a recolher; b) Será proibida a cumulação de proventos de aposentadoria ( fruto do trabalho realizado) com a reparação mensal a título de anistia politica, obrigando-se o mesmo a optar por uma destas verbas; c) imposição do teto do INSS para o valor máximo da reparação de anistia politica , assim como os índices do RGPS. Estas, em síntese, as mudanças propostas e já aprovadas em primeira etapa legislativa na Câmara dos Deputados, que misturam dois conceitos totalmente diferentes, -o previdenciário e o indenizatório-, sendo que o primeiro é decorrente do tempo de trabalho e respectivas contribuições previdenciárias ao longo do tempo, a depender de cada legislação previdenciária, e o segundo – a indenização de anistia politica- consiste em uma recomposição dos prejuízos causados aos anistiados por motivo do regime de exceção que os perseguiu e prejudicou em determinado tempo histórico que o Estado entendeu de indenizar, por haver excedido de suas próprias leis.
Esta questão conceitual, buscando-se através destas mudanças constitucionais impor o conceito previdenciário para as verbas de anistia , tem um objetivo maior e nefasto, pois significa a desnaturação jurídica, material e simbólica das reparações de anistia no Brasil, conquistadas após tantas lutas adentrando-se por uma estrada que, uma vez não enfrentada, terá como próxima “ estação” colocar um ponto final em todo processo de justiça de transição brasileiro, iniciado em 1988 e que hoje atravessa o seu pior período. Não se trata simplesmente do valor da contribuição, da alíquota ou a cumulação com outros proventos (o que é um direito de quem fez jus a outro benefício através de seu trabalho), mas de uma estratégia do Estado deixar de reconhecer que tem o dever de indenizar e que perseguiu por motivo politico durante a ditadura, o que, via de consequência, significa passar a isentar o mesmo Estado de seus crimes. Embora estas mudança somente se aplicará ás novas anistias a partir da reforma, se trata de um conjunto de mudanças legislativas que visam fundamentalmente ir, lentamente, afastando não somente o caráter reparatório e indenizatório das verbas de anistia, mas também o significado politico-educativo das mesmas, diluindo-as nos pagamentos previdenciários, para que percam o simbolismo e a natureza constitucional e politica.
Por fim, encerro este texto alertando anistiandos e anistiados, assim como todos aqueles que lutam pela democracia e os direitos humanos, para a gravidade destas propostas que tramitam hoje no Senado, entendendo que se incluem na politica canhestra deste governo de tentar ocultar e destruir a memória das atrocidades da ditadura militar e das lutas que também houveram. Caso estas alterações sejam aprovadas pelo Senado estaremos dando passos atrás, coincidentemente quando rememora-se os 40 anos da primeira lei de Anistia no Brasil pós-golpe militar de 1964. Não possui a extrema-direita a coragem – ainda – de alterar o caput do art. 8 do ADCD da Constituição Federal que assegura o universal e humano direito de anistia politica, mas, sorrateiramente, vão lentamente “ matando” este direito, como na atual reforma.
*Aderson Bussinger, Advogado, Diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ, Conselheiro da OAB-RJ, integra a Comissão Nacional eleita de Interlocutores do Fórum Nacional em Defesa da Anistia Constitucional.