22.8.19

A REFORMA DA PREVIDÊNCIA TAMBÉM MATA A ANISTIA POLÍTICA

ADERSON BUSSINGER -



No próximo dia 27 de agosto estarei participando como um dos palestrantes  em evento na Câmara dos Deputados, em Brasilia, juntamente com demais  companheiros do movimento nacional em defesa da anistia politica, cuja finalidade  será   rememorar  (não há comemoração alguma!)  a  anistia politica concedida em 1979, que completa 40 anos. Em verdade estaremos lá principalmente para protestar, pois  esta anistia é uma luta ainda inconclusa  no Brasil, restando muitos perseguidos a serem anistiados, sobretudo operários perseguidos, assim como a lei 6. 683 promulgada pelo General Figueiredo em 28 de agosto de 1979, ainda trouxe incluso dispositivo que  também anistiou os crimes denominados de  “ conexos “, ou seja: aqueles  crimes de tortura praticados por integrantes civis e militares dos órgãos de repressão politica, conforme acabou posteriormente avalizado  pelo  STF, contra  Tratados Internacionais que  dizem exatamente o contrário. Em verdade, a lei de anistia de 79 foi uma vitória parcial, ao possibilitar a soltura de parte dos presos políticos e trazer a maioria dos exilados de volta, mas  ao mesmo tempo  protegeu agentes do regime.

Ocorre que, como uma tentativa de se voltar ao passado de  exceção, a situação ficou ainda muito pior  no atual Governo de extrema-direita,  que não esconde de ninguém  a defesa do golpe militar de 1964, cabendo destacar os seguintes retrocessos somente nestes  últimos  seis meses: 1)-A  transferência da Comissão Nacional de Anistia do Ministério da justiça para o Ministério dos Direitos Humanos, mulheres  enfraqueceu o seu caráter de órgão de Estado, deslocada para um Ministério  sabidamente com ínfimo poder e expressão na Esplanada dos Ministérios; 2)A mudança do regimento interno  da Comissão, suprimindo-se  recurso de julgamento para o Pleno e restringindo o acesso aos processos é visivelmente um retrocesso em sua estrutura original em funcionamento há mais de 20 anos; 3)A nomeação de do atual Presidente da Comissão, ex-assessor parlamentar de Bolsonaro quando este era Deputado  Federal,   que notoriamente advogava nos Tribunais contra a Comissão de Anistia e suas decisões; 4)-A  nomeação (contestada judicialmente pelo MPF) de Oficiais superiores do Exército brasileiro para  o cargo de Conselheiros, ou seja, julgadores da Comissão, com opinião declaradamente contrária á anistia politica e, um destes,   confesso admirador do torturador Ustra; 5- A adoção nos julgamentos  de trabalhadores perseguidos do conceito de que as greves contra a ditadura militar não foram politicas, bem como os membros de organizações de esquerda são terroristas; 6-A revisão ilegal  de  diversos  julgamentos realizados pela Comissão de Anistia, com base em  conceitos  pró-regime militar;7- O recente anúncio de não  conclusão do Memorial da Anistia em Minas Gerais, conforme  deliberado pela Comissão anterior e apoiado por todas as entidades da sociedade civil.

E cumpre dizer que não se diga que as entidades de Anistia não buscaram o diálogo, pois eu mesmo participei   de  uma  Comissão Nacional que reuniu-se em  junho deste ano em ​Brasília com a Senhora Ministra Damares e, nesta oportunidade, expusemos todas nossas criticas e preocupações, apelando para   que  fosse  cessado  todo este desmonte da Comissão de Anistia; Além disto, houve reunião com os novos Conselheiros, incluindo os militares, bem como duas audiências publicas no Congresso Nacional, para tentar sensibilizar sobre alguns temas como a questão das  greves durante o regime militar, restabelecimento  integral dos direitos dos militares cassados e outros aspectos, mas  pelo que se depreende  do desdobramento dos fatos,  tudo isto foi  em vão, inócuo, apenas servindo para demonstrar  o quanto  a diretriz  anti-anistia é  por parte deste Governo  deliberadamente um projeto    anti-memória  da  ditadura militar, no âmbito de sua pregação geral contra os direitos humanos.  Mas não é só! Há muito mais  prejuízo  em vias de votação no Senado Federal, neste momento, para onde  seguiu o projeto de Reforma da Previdência, tendo em vista se tratar de mudança  no texto constitucional.

Com efeito, o projeto que está no Senado é ainda mais  letal  para  o tema da anistia politica, pois a mudança constitucional  que agora se pretende fazer no art. 8 do ADCT ( Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) é muito mais grave e afirmo que  provavelmente o maior  ataque  já ocorrido.  Vejamos  o porquê disto ? A base de toda regulamentação da anistia política de 1946 a 1988, no Brasil, é o acima citado artigo 8, pelo qual os Constituintes de  1988  deliberaram  por conceder anistia politica  a  todos  aqueles   perseguidos  pelo regime militar de 64 (e inclusive contemplando  ás perseguições de 1946 a 1964 também), o que   depois  resultou  na regulamentação da atual lei de anistia no ano de 1992 ( Lei 10. 559/02). Esta lei  traz  as diversas hipóteses de  perseguições , demissões, cassações, punições, enfim, situações  a serem  contempladas  com a  declaração de anistia, assim como a concessão de  indenizações em favor dos  anistiados, que poderá ser em parcela única, ou de prestação mensal continuada. Sobre estas reparações, cabe  também  aqui dizer que a maioria dos anistiados são, por exemplo,  ex-funcionários públicos, ex-operários,  ex-bancarios ,  ex-militares, que, além de muitos destes guardarem em seus corpos as marcas da tortura,  em sua maioria absoluta até hoje não conseguiram assegurar do Estado  o mesmo  rendimento que recebiam quando foram punidos, sobrevivendo de outros trabalhos ou aposentadorias.

Sucede que a atual reforma  da previdência propõe mudar a  natureza  jurídica, antes indenizatória, para doravante  previdenciária  das verbas de anistia política,  através da mudança dos  parágrafos  6, 7 8 e 9 do art. 8 do  ADCT (Ato das disposições constitucionais transitórias) da Constituição federal de 1988, o que,  se aprovado, resultará no seguinte: a) os anistiados passarão a contribuir para a Seguridade  Social,  através de uma alíquota que será aplicada sobre  suas  pensões  mensais, de forma cumulativa com outras contribuições que o anistiado já esteja obrigado a recolher; b) Será proibida a  cumulação de  proventos de aposentadoria ( fruto do trabalho realizado) com a reparação mensal a título de anistia politica, obrigando-se o  mesmo a optar por uma  destas verbas; c) imposição do teto  do  INSS para o valor máximo  da  reparação de anistia politica , assim como os índices do RGPS.  Estas, em síntese, as  mudanças  propostas  e já aprovadas  em primeira etapa   legislativa  na Câmara dos Deputados, que  misturam  dois conceitos totalmente diferentes, -o previdenciário e o indenizatório-, sendo  que o primeiro  é  decorrente do   tempo de trabalho e respectivas contribuições  previdenciárias ao longo  do tempo, a depender de cada legislação previdenciária, e o segundo – a  indenização de anistia politica- consiste em uma recomposição  dos   prejuízos causados  aos  anistiados  por motivo do regime de exceção  que os  perseguiu  e  prejudicou em determinado tempo histórico que o Estado entendeu de indenizar, por haver excedido  de suas próprias leis.

Esta questão conceitual,  buscando-se   através destas mudanças constitucionais impor o conceito previdenciário para as verbas de anistia  ,  tem um objetivo  maior e  nefasto,  pois significa  a desnaturação  jurídica, material e  simbólica  das  reparações   de anistia no Brasil, conquistadas após tantas lutas adentrando-se por uma estrada que, uma vez não  enfrentada,  terá como próxima “ estação”  colocar  um ponto final  em  todo  processo de justiça de transição brasileiro, iniciado em 1988 e  que  hoje  atravessa o seu  pior período.  Não se trata simplesmente do valor  da contribuição, da alíquota  ou  a  cumulação com outros proventos (o que é um direito de quem  fez jus a outro benefício através de seu trabalho), mas  de  uma  estratégia   do Estado deixar  de  reconhecer  que tem o dever  de   indenizar   e  que perseguiu  por motivo politico  durante a ditadura, o que,  via de consequência, significa  passar  a isentar o mesmo Estado de seus  crimes.   Embora estas  mudança  somente  se aplicará ás novas anistias a partir da reforma,  se  trata  de    um conjunto de mudanças legislativas que visam  fundamentalmente   ir, lentamente,  afastando    não  somente  o caráter  reparatório e  indenizatório das verbas de anistia, mas   também  o  significado  politico-educativo das mesmas,   diluindo-as nos pagamentos previdenciários, para que percam   o  simbolismo e a natureza constitucional e politica.

Por fim, encerro este texto   alertando  anistiandos  e anistiados, assim como todos aqueles que lutam pela democracia e os direitos humanos,  para  a  gravidade  destas   propostas que tramitam hoje  no Senado, entendendo que  se  incluem  na  politica  canhestra  deste governo de tentar ocultar  e   destruir  a  memória  das  atrocidades  da ditadura militar e  das lutas que também  houveram. Caso  estas alterações  sejam  aprovadas pelo Senado estaremos dando passos atrás, coincidentemente  quando  rememora-se  os   40 anos  da   primeira lei de Anistia no Brasil  pós-golpe militar de 1964. Não possui a extrema-direita  a coragem – ainda – de  alterar o caput do art. 8 do ADCD da Constituição Federal  que assegura o  universal e humano direito de  anistia politica, mas, sorrateiramente, vão  lentamente  “ matando”   este direito, como na atual reforma.

*Aderson Bussinger, Advogado, Diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ, Conselheiro da OAB-RJ, integra a Comissão Nacional eleita de Interlocutores do Fórum Nacional em Defesa da Anistia Constitucional.