23.4.19

SINCRETISMO, MACUMBA, CERVEJA: DAS TERRAS NÓRDICAS AOS GONGÁS SUBURBANOS

LUIZ ANTONIO SIMAS -


Vamos brincar de roda: 23 de abril. Dia de Pixinguinha, do choro, da cerveja alemã (a Reinheitsgebot, Lei de Pureza do Duque Guilherme IV da Baviera, é de 23 de abril de 1516), da festa de São Jorge e, no Norte europeu, da celebração de Sigurd (ou Siegfried), o grande caçador de dragões da mitologia nórdica, personagem marcante da Saga dos Volsungos. E é dia de Ogum (no Rio) e Oxóssi (na Bahia).

Na disputa - repleta de incorporações de sentidos entre divindades e fluxos de forças vitais - entre o paganismo e o cristianismo no norte da Europa, os atributos de Sigurd foram provavelmente amalgamados aos de São Jorge. A espada do guerreiro nórdico foi incorporada ao mártir católico. O dragão da cobiça e da traição, combatido por Sigurd, virou, na encruzilhada em que a vida acontece, o dragão da falsa idolatria combatido por Jorge da Capadócia. No calendário cristão, a celebração de Jorge passou a ser feita no dia da celebração do guerreiro volsungo.

Sigurd virou Jorge, que virou Ogum, que virou Jorge de novo nas esquinas cariocas. Santo, guerreiro nórdico, inquice Nkozi dos bantos, orixá iorubano que bebe cerveja. Para apimentar mais: não custa lembrar que o Kalevala - a epopéia nacional finlandesa que conta as façanhas do bardo Vainamoinem e do ferreiro Ilmarinem, aquele que, como o Ogum iorubá, ensinou os homens a fazer na forja o arado e os instrumentos de guerra - tem mais recitativos sobre a origem da cerveja que sobre a origem da humanidade.

Marcado por estes cruzamentos todos, é por isso que no meu calendário particular o dia 23 de abril é o dia internacional da macumba e dos macumbeiros.

Macumbeiro, no meu dicionário afetuoso, é definição de caráter brincante e político, que subverte sentidos preconceituosos atribuídos de todos os lados ao termo repudiado, e admite as impurezas, contradições e rasuras como fundantes de uma maneira encantada de se encarar e ler o mundo no alargamento das gramáticas, com a predisposição para incorporar forças vitais.

A expressão macumba (que em quimbundo designa um antigo instrumento musical similar ao reco-reco) vem muito provavelmente, em seu sentido religioso, do quicongo "kumba"; feiticeiro (o prefixo "ma", no quicongo, forma o plural). Kumba também designa os encantadores das palavras; poetas. Macumba seria, então, a terra dos poetas do feitiço; os encantadores de corpos e palavras que podem fustigar e atazanar a razão intransigente e propor maneiras plurais de reexistência e descacetamento urgente, pela radicalidade do encanto, em meio às doenças geradas pela retidão castradora do mundo como experiência singular de morte. Aqui, nas Áfricas e nas terras geladas aonde a própria terra termina.

O macumbeiro reconhece a plenitude da beleza, da sofisticação e da alteridade entre as gentes. Sigurd matou o dragão que Jorge matou de novo, com a espada feita na forja de Ogum, parecida com a forja de Ilmarinem, para que todos acabassem aos pés do altar, batendo tambor, cabeça no gongá, e ouvindo um choro de Pixinguinha numa esquina do Rio, tomando a cerveja que foi do Duque da Baviera e hoje é do santo guerreiro nos terreiros de fé.

Como diria Guimarãe Rosa, viver é etecetera.

Saravá pra beleza do mundo!

Fonte: Facebook