24.11.16

ONZE MORTOS NA CIDADE DE DEUS

ANDRÉ BARROS -


O Rio de Janeiro foi a maior população escrava do mundo e hoje tem a maior população vivendo em favelas no Brasil. Negros que foram degredados da África e escravizados no Brasil, hoje vivem presos na miséria das favelas, sem acesso nem mesmo a saneamento básico.

A história da Cidade de Deus, que virou bairro, é racista desde a raiz. Em 1964, ano do golpe militar, para a região de Jacarepaguá, milhares de pessoas negras foram removidas de favelas do Leblon. Assim nasceu o conjunto habitacional chamado Cidade de Deus, um lugar muito distante do centro, sem qualquer acesso à infraestrutura e necessidades mais básicas.

No último fim de semana, os moradores sobreviveram a um tiroteio de 12 horas. Sete, porém, não tiveram a mesma sorte e foram executados com tiros na cabeça. Quatro policiais morreram na queda de um helicóptero. A grande mídia, sem qualquer investigação ou esclarecimento dos fatos, começou a divulgar que o equipamento caiu depois de ter sido atingido por “traficantes”. No imaginário social da elite predomina a ideia de que todos os moradores das favelas são “traficantes” e que estamos vivendo uma guerra. Essa narrativa midiática vem para justificar a entrada de uma polícia militarizada que, como se estivesse numa guerra, entra atirando com armas poderosas sem se preocupar muito em quem está na frente. Acontecendo algum chamado “acidente de trabalho”, depois, se houver algum procedimento policial e judicial, este é arquivado.

Dos cerca de 40 mil habitantes, você vai encontrar em torno de duzentos jovens fortemente armados naquele bairro. Pistolas, semiautomáticas e automáticas chegam às mãos de adolescentes, jovens e até crianças, quase todas negras, magras, carregando armas pesadíssimas, mal conseguindo sustentá-las, sem receberem qualquer treinamento, exceto os que passaram por quartéis durante o serviço militar obrigatório. Supostamente do outro lado, temos uma polícia militarizada, bem treinada, com homens fortes e armas poderosas. Digo “supostamente”, pois existem batalhões que são aliados a determinadas facções criminosas. Tudo isso é alimentado pela ilegalidade da maconha e de outras substâncias ilícitas. Essa ilegalidade é que faz os produtos ficarem bem caros, a fim de sustentar a corrupção do sistema penal militar e judicial, onde a compra e venda de armas e munições reside no âmago dessa cadeia da ilegalidade.

Sabemos que a maconha e outras substâncias ilícitas são vendidas e compradas do Leblon à Cidade de Deus. Difícil saber onde o comércio ilícito é maior. Mas é só na Cidade de Deus que ele é supostamente combatido e é criada uma guerra para vender armas e munições. Ninguém quer desarmar essa juventude negra e pobre. Querem continuar a matança racista desse sistema, que trocou a abolição da escravidão pela prisão do direito penal. O absurdo da Justiça chega ao ponto de expedir um mandado coletivo de busca e apreensão no bairro Cidade de Deus. Uma decisão teratológica, para não usar outro adjetivo mais apropriado. Apenas por amor ao debate, como hipocritamente é colocado em alguns conclaves jurídicos, vamos imaginar o que aconteceria se a polícia começasse a entrar em apartamentos do Leblon em busca de drogas ilícitas e de armas?

Trata-se de uma ordem judicial absurda, que usa o direito e a democracia como se estivéssemos num estado de exceção. O artigo do código de processo penal é muito claro, o mandado de busca é para uma determinada casa e não pode ser coletivo, vejam:

“Art. 243. O mandado de busca deverá:

I – indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem;”

Se é que fosse possível, uma busca e apreensão coletiva poderia acontecer somente através de um decreto presidencial de estado de sítio, como estabelece o artigo 139, inciso V, da Constituição Federal:

“Art. 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas:

… V – busca e apreensão em domicílio;”

Nenhum juiz é competente para determinar uma busca e apreensão coletiva no Brasil. Respeitem a Cidade de Deus!