20.9.16

A INDECOROSA POLÍTICA UTERINA

HÉLIO DUQUE -


É indecoroso fazer política uterina, em benefício dos filhos, irmãos, cunhados. O bom político costuma ser mau parente.” O saudoso timoneiro da redemocratização Ulysses Guimarães, no livro “Rompendo o Cerco”, alertava que o vácuo popular na política brasileira seria ocupado pelas dinastias familiares. Morto há duas décadas e meia, foi poupado de viver o tempo presente, onde a inflação de filhos, esposas, irmãos, sobrinhos, cunhados e agregados pela genética proliferam na vida pública, formando disfarçadas capitanias hereditárias na ocupação de cargos no executivo, no legislativo e até no poder judiciário.

No início do século passado, o notável político e diplomata Joaquim Nabuco denunciava a presença dos régulos provinciais e nacionais no Brasil. Na sua visão, o régulo é o chefe de um Estado bárbaro, com mentalidade arrogante, dotados de autoritarismo primário, supostamente intimidador. Eram os “velhos coronéis” que tinham total desprezo pelo bem estar coletivo. Com o advento da Revolução de 30, foram compulsoriamente aposentados e outros assassinados. Agora, nesse início de século 21, a política transformou-se em um grande negócio, onde os “régulos com nova roupagem” transformaram-se em caçadores de renda, levando a degeneração ética e a ampliação do poderio familiar nas disputas eleitorais. Estabelecem os feudos genéticos, ampliando a desconfiança e o desrespeito de partes do eleitorado pela atividade pública. A máquina vem sendo capturada e colocada a favor dos interesses privados e grupais.

As tiranias genéticas, quase sempre despreparadas, são figuras liliputianas, deslumbradas com as delícias do poder. Tem nos partidos políticos frágeis, inexistentes como representantes de princípios e ideários, o grande aliado. Eles servem unicamente para registro de candidaturas, cultivando o arcaísmo como projeto de poder. Desigualdade social, cidadania incompleta, falta de compromisso com os valores humanistas, onde a liberdade, a igualdade e a fraternidade é pedra angular, então fora da agenda. E o mais grave: a elite brasileira, expressada em seus estratos econômicos, políticos, sociais e até intelectuais em vastos segmentos, tem integração passiva com essa pilhagem do Estado.

Os políticos uterinos rejeitam Aristóteles. Ele ensinava, na velha Grécia, que o valor público supremo é servir ao bem comum. São ignorantes, por conveniência, do valor da “res pública”. Anti-republicanos, buscam mandato por autoafirmação ou para “se dar bem na vida”. O civismo e a dissimulação alimentada na cultura patrimonialista e no poder fisiológico estão gerando no Brasil, o enfraquecimento do Estado democrático. São herdeiros do pensamento de um velho coronel mineiro do Vale do Jequitinhonha, transcrito pelo médico e escritor Pedro Nava na sua vasta obra: “Haveremos de resguardar a canalhice para aderir no tempo oportuno”.

Em passado recente, as regiões norte e nordeste eram líderes absolutas no enraizamento das oligarquias familiares. Lamentavelmente, as regiões sul e sudeste, nos últimos tempos, aderiram ao nefasto modelo, onde os interesses familiares vem prevalecendo: filhos, mulheres, cunhados, irmãos e agregados familiares arrombaram a vida pública. No Rio de Janeiro, o pesquisador e militante político, nos “anos de chumbo”, Alfredo Sirkis, há algum tempo, afirmava: “A maioria dos bons quadros da sociedade civil foge dessa vida política nauseabunda. Quem não dispõe de fortuna individual, púlpito de pastor, microfone de radialista, direção corporativa, prefere evitar compromissos comprometedores, ou, no mínimo, embaraçosos, terá dificuldade de competir. Para o político íntegro, essa ave rara, vai se chegando à quadratura no círculo.”

Pensamento no mesmo diapasão da jornalista Dora Kramer, na sua coluna no “Estado de S.Paulo”, há tempos: “Se a atividade política se desqualifica e é por todos desqualificada, a tendência natural dos melhores quadros é a de se manter longe desse ambiente. Se o processo continua deformado, pode ocorrer uma grande renovação para pior. Renovar por renovar não garante nada.”

A rigor, em nome de uma falseada mudança renovadora, os oligarcas familiares escalam os seus herdeiros nos governos de Estado, nas Prefeituras, no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas, nas Câmaras Municipais, para incorporar poder e garantir o loteamento da administração pública consolidando o Estado patrimonialista. Naquele seu livro, Ulysses Guimarães advertia: “O poder não corrompe o homem. É o homem que corrompe o poder”.

*Hélio Duque é doutor em Ciências, área econômica, pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Foi Deputado Federal (1978-1991). É autor de vários livros sobre a economia brasileira.