Por NILDO OURIQUES - Via Le Monde Diplomatique Brasil -
A vida sustentada pelo antigo mito da estabilidade em que se apoiaram os
governos tucanos já não é mais possível e, de certa forma, tampouco o
governo petista pode manter o controle da situação apenas com o
“princípio de transformação da matéria mítica”, o crescimento.
O Plano Real é o maior pacto de classe conquistado pela burguesia
brasileira após abril de 1985. Fernando Henrique Cardoso lançou mão da
antropologia estrutural de Lévi-Strauss para justificar sua adoção
poucos dias antes de sua eleição para a Presidência da República ao
assinalar o caráter simbólico, de extração mítica, da estabilização
monetária. “A minha experiência de campanha é a seguinte: tudo aqui é
simbólico. Você necessita criar um mito. E tem que contar a mesma
história repetindo quem é bom e quem é mau. Tem que ter dois ‘Y’ e vai
mudando na estrutura do mito, como Lévi-Strauss. É binário: o bem e o
mal. Tem que contar durante toda a campanha de várias maneiras, o mesmo
mito. Em nosso caso é a moeda. O que é o mal? A inflação. O que é o bem?
A estabilização. Foi o que fizemos. A cada momento eu ataco outra vez o
mito principal. Mito no sentido antropológico. Você tem que chegar à
estrutura mais elementar e insistir nela. A cada três ou quatro
programas eu volto ao assunto. O real é bom, a inflação é má. Quem está
com a inflação são os maus, quem está com o real são os bons. Foi apenas
isso.” (Veja, 27 set. 1994).
Enfim, o mito da moeda forte deu a eleição a FHC. No entanto, ainda que
exale certa elegância, a lição estava incompleta. A antropologia
estrutural de Lévi-Strauss, o antropólogo francês, revela a estrutura
binária do mito, mas indica também, em outro texto, a importância da
“morte dos mitos”, algo útil para analisar a situação atual quando
observamos sinais de exaustão social com a estabilidade monetária.
No contexto brasileiro, quando as dificuldades do Plano Real se
revelaram no segundo mandato de FHC e amplos setores sociais começaram a
exigir o crescimento econômico, ocorreu o “princípio de transformação
da matéria mítica”, ou seja, do mito da estabilidade nasceu o mito do
crescimento econômico. Na primeira fase – os dois mandatos de FHC –, a
função do mito garantiu a necessidade burguesa da estabilidade
monetária. O ativismo sindical da época inflacionária não somente
desacreditava o mercado, como indicou o comportado Keynes, mas,
sobretudo, permitia que a luta dos trabalhadores para recuperar o poder
de compra corroído pela inflação alta impulsionasse níveis de
consciência crítica maior no sindicalismo brasileiro. No período
presidencial de Lula, quando a estabilidade já era “pão comido” e as
novas gerações já não se iludiam com o fantasma da volta da inflação –
na realidade, estavam muito mais interessadas na luta contra os baixos
salários –, surgiu no final do primeiro mandato (2003-2006) o mito do
crescimento, ou seja, o princípio da transformação da matéria mítica que
consta na antropologia estrutural do professor francês que se fez
intelectual na colonização da USP.
Não há, portanto, oposição entre a fase
neoliberal do Plano Real (governo FHC) e a emergência da fase
desenvolvimentista (governos Lula e Dilma). Há, antes de tudo, necessária continuidadeentre os dois governos, ainda que a fabricação da opinião pública insista na oposição partidáriaentre
petistas e tucanos, como se, de fato, ambos não compartilhassem a mesma
razão economia-política. Na prática, tem razão Gilberto Vasconcellos ao
afirmar a existência do “petucanismo”, essa perversa forma de dominação
burguesa que perpetua o desenvolvimento do subdesenvolvimentono
país, limitando o destino da nação à condição de um anão no jogo de
poder mundial, da mesma forma que realiza uma inédita digestão moral da
pobreza conveniente para as classes dominantes e, de quebra, exibe a
impotência da burguesia industrial comandada por São Paulo.
Não há que se iludir sobre o fundamental, pois tanto a fase da
estabilidade econômica quanto o posterior “crescimento” outro destino
não possuem senão a manutenção do país na condição de um gigante com pés
de barro. Ambas as fases – a estabilidade e o crescimento – têm um
custo demasiadamente elevado e comprometem não somente o futuro das
próximas gerações, mas impedem, de maneira radical, a construção de um
projeto nacional. Não deixa de ser expressão desse pacto de classe a
quase coincidência entre os economistas de todos os candidatos com
possibilidades eleitorais nas eleições que se aproximam. As divergências
entre eles estão reduzidas quase que exclusivamente a uma “crise
gerencial”, como se estivéssemos limitados a uma crise de competência na
gestão da mesma política.
Nesse contexto, não haverá jamais – ao contrário da ideologia que rola
entre os economistas como se fosse conhecimento científico – a
possibilidade de uma combinação ótima entre as metas de inflação de um
lado e a taxa de juros e de câmbio de outro, condição necessária para
abrir a senda do crescimento. Há grave regressão intelectual na ciência
econômica, pois os economistas se especializaram em explicar como o
mundo deveria ser, e não as razões pelas quais ele é como é. Em
consequência, atuam como ideólogos e destinam seu tempo e “teorias” ao
ocultamento sistemático da realidade. Assim, ignoram as razões que
levaram as distintas frações do capital ao desprezo das condições
favoráveis existentes entre 2004 e 2008 para inaugurar a desejada fase
de crescimento sustentado. Afinal, por que as travas do crescimento não
foram removidas se as condições internas e externas eram então
favoráveis?
Ao contrário do perigoso consenso estabelecido entre os economistas,
opino que o megaendividamento estatal, a superexploração da força de
trabalho e a severa regressão industrial são obstáculos insuperáveis
para uma nova fase de expansão produtiva.
O Plano Real, o pacto de classe que paralisa o Brasil, sustenta-se
sobre três pilares. O primeiro deles – tanto na fase da estabilização
(FHC) quanto na do suposto crescimento (Lula/Dilma) – é o gigantismo do
endividamento estatal (interno e externo). Em junho de 1994, a dívida
interna não superava R$ 64 bilhões e FHC concluiu seu segundo governo
com R$ 700 bilhões. Lula não ficou atrás: após oito anos, a dívida
interna alcançou R$ 1,5 trilhão e Dilma tampouco vacilou em superar os
R$ 3 trilhões. Na mesma direção, o endividamento privado externo voltou a
crescer e contribui de maneira direta para manter o automatismo da
dívida segundo o qual quanto mais o país “paga”, mais a dívida cresce!
A consequência necessária dessa opção é que em nenhum ano o Estado
brasileiro destinou menos de 44% do orçamento para o pagamento dos juros
e dividendos da dívida. O superendividamento estatal trouxe duas
consequências nefastas: por um lado, inibiu severamente a taxa de
investimento estatal, variável indispensável para impulsionar o
investimento privado que a política desenvolvimentista requer e, por
outro, naturalizou o princípio neoliberal de austeridade fiscal,
permitindo somente em termos marginais programas sociais consistentes e a
melhoria da infraestrutura que os neoliberais exigem. É fácil observar a
incapacidade do Estado brasileiro – prisioneiro do automatismo da
dívida – e a impotência dos governantes diante do quadro. Quando
explodiram as jornadas de junho, as propostas para melhoria do
transporte público exigidas por milhões de pessoas não foram mais do que
cosméticas, como podemos agora comprovar. Os empresários reclamam da
elevada carga tributária como se esta não fosse, de fato, um princípio
do endividamento estatal programado em junho de 1994, quando o Banco
Central elevou a taxa de juros aos incríveis 49,9%. Em oposição, eles
preferem afirmar que a dívida é resultado de um Estado ineficiente e
perdulário, “tese” sem qualquer sustento.
O segundo pilar do Plano Real é a superexploração dos trabalhadores,
agora devidamente ocultada pela ideologia da emergência da “nova classe
média” e as “teorias” do “precariado”, entre outras. A Secretaria de
Assuntos Estratégicos da Presidência da República divulgou há poucas
semanas a metodologia que terminou por criar uma poderosa classe média
em nosso país. Agora, a classe média altaestá definida pela renda percapitaentre R$ 741 e R$ 1.019! Não é um luxo?
Antes da novidade, o quadro já era gravíssimo, pois no Brasil pelo
menos 76% da população economicamente ativa recebe até três salários
mínimos. A economia política inglesa ensina desde os tempos de Adam
Smith (1776) a importância do salário mínimo necessário– aqui
no Brasil calculado pelo Dieese –, que alcançou em junho o valor de R$
2.979,25, razão pela qual mais de 80% da PEA não atinge sequer as
condições mínimas de reprodução da força de trabalho. Contudo, não
estamos de mãos abanando. No lugar da antiga lição da economia política
inglesa, o governo – e a oposição tucana também! – lançou mão da
caridade cristã na forma de política social. A política social criada no
governo FHC e turbinada por Lula mais tarde destina migalhas da riqueza
social aos pobres e simula a impressão de que os governos petistas são
mais sensíveis do que os tucanos. Ninguém ignora o desprezo aos pobres e
a violência contra os sindicatos durante o governo de FHC, mas não se
pode tampouco desprezar o fato de que a riqueza pública cresceu de
maneira expressiva na última década, razão pela qual as migalhas foram
um pouco maiores nos governos petistas. No limite, a política social
serve na prática de ideologia para a solução da “questão social” no
estreito marco de um país dependente, onde, supostamente, já não seria
mais um “caso de política” (Washington Luís) e poderia – na versão
oficial – ser resolvida sem tocar na propriedade privada e/ou no poder
político. Sem dúvida, o melhor dos mundos possíveis para a classe
dominante! À classe média – e seus porta-vozes na TV que execram a
política social petista e denunciam seu suposto caráter “populista” –
fica garantida a paz social, pois os pobres já não são detentores de uma
razão iracunda indispensável para a sobrevivência política e social e
combustível necessário para o protesto social, mas se limitam à
simulação de uma “cidadania” – necessariamente passageira e limitada –
do consumo, sem custo maior para o Estado. Eis a razão pela qual, para
dar apenas um exemplo, o principal programa do governo – o Minha Casa,
Minha Vida – é tão modesto, incapaz de enfrentar ou sequer diminuir o
déficit habitacional de 13 milhões que o país acumula.
Por isso, ao contrário do que diz a propaganda petista, os tucanos
jamais revogarão os programas sociais dos últimos governos porque
aqueles são parte de uma estratégia de dominação que interessa a ambos.
Nenhum candidato da oposição eliminará os programas sociais e tampouco
há sinais de que estamos diante da emergência de uma direita fascista
capaz de atacar os pobres.
O terceiro pilar do Plano Real é o
reforço do país numa posição adversa na divisão internacional do
trabalho, ou seja, como mero exportador de produtos agrícolas e
minerais. Esse processo aparece sob a forma de uma denúncia genérica
contra a “desindustrialização”, cuja solução poderia ser – como indicam
os tucanos – a redução ainda mais radical dos custos industriais via
abertura industrial mais profunda destinada a importar peças, máquinas e
equipamentos de países como a China. O governo descarta o nacionalismo
econômico (política industrial) na pretensão de que com renúncia fiscal
destinada a manter o consumo de geladeiras ou carros fosse possível
constituir um projeto nacional e manter o pacto entre o capital
transnacional e as frações perdedoras do agonizante capital nacional.
Contudo, contraditoriamente, há vida na agonia. A taxa de câmbio que
denunciam sobrevalorizada é a mesma que permite aos industriais lucros
extraordinários e, obviamente, dólar abundante e barato para importação
de máquinas e equipamentos que aumentam a produtividade do trabalho e
condenam o processo de industrialização que simulam defender. Os
comerciantes não ficam atrás e se lançam no Sudeste Asiático na compra
de todo tipo de mercadorias com as quais inundam o mercado interno,
“segurando” a pressão inflacionária e aprofundando a desnacionalização.
A experiência histórica demonstra que não pode existir mercado interno
forte sem nacionalismo econômico. Ademais, a manutenção da
superexploração da força de trabalho e a acelerada desnacionalização da
produção de máquinas e equipamentos fecham o cerco contra as ilusões
desenvolvimentistas segundo a qual o mercado interno seria capaz de
sustentar a expansão de taxas de crescimento superiores às modestíssimas
exibidas no governo da presidente Dilma. O fim da reforma agrária em
nome da expansão da fronteira agrícola destinada à produção para
exportação elimina qualquer esperança num projeto nacional de
desenvolvimento. Contudo, é indispensável para manter o pacto entre
latifundiários e transnacionais, além de contemplar capitais industriais
e comerciais nacionais.
Os sinais de esgotamento do pacto chamado Plano Real são claros. O
crescimento não chegou, causando inocultável constrangimento aos
desenvolvimentistas; além disso, mesmo a modestíssima pressão
inflacionária permite aos neoliberais o clima necessário para retomar a
iniciativa política exigindo mais “reformas” na direção de eliminar
direitos sociais considerados excessivos num país dependente e a
afirmação da velha ortodoxia neoliberal. No limite, todos os candidatos à
sucessão presidencial tramam em silêncio um novo ajuste que será
considerado tão inevitável quanto necessário para o futuro da nação após
as eleições. As greves voltaram nos últimos dois anos e o humor dos
trabalhadores com a promessa de estabilidade e/ou crescimento não é o
mesmo de outros tempos. A vida sustentada pelo antigo mito da estabilidadeem
que se apoiaram os governos tucanos já não é mais possível e, de certa
forma, tampouco o governo petista pode manter o controle da situação
apenas com o “princípio de transformação da matéria mítica”, ocrescimento.
No mundo em crise, não pode haver dúvida a respeito: somente quando os
trabalhadores superarem a condição cativa em que ainda se encontram
poderão inaugurar um novo tempo em que construirão seu futuro com a
energia criadora de suas próprias mãos, governados exclusivamente pela
consciência crítica de seus próprios interesses.