Via Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas -
As imagens da violência contra os moradores do Metrô-Mangueira que marcaram a semana infelizmente não
são novidade na forma de agir da Prefeitura do Rio de Janeiro em processos de
remoção. Desde 2010, o poder público municipal tenta tirar a comunidade com
diferentes argumentos: estacionamento para a Copa, passarela de acesso e,
atualmente, o projeto seria a construção de um pólo automotivo. O fato é que
uma favela a 500 metros do Maracanã, palco da final da Copa do Mundo de 2014,
não parece combinar com a imagem que o Rio quer passar ao exterior.
Cartaz colado no muro do Metrô-Mangueira. Após prometer pessoalmente que famílias não ficariam desassistidas, o prefeito Eduardo Paes sumiu. |
Mas o que a Prefeitura conseguiu expor ao mundo
foi a sua prática de violações de direitos e a violência com que trata a
população de baixa renda na preparação da cidade para os grandes eventos
esportivos. Prática que já vem sendo denunciada desde 2011 pelo relatório
da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e
Ambientais (Dhesca), pelo dossiê do Comitê Popular da Copa e
Olimpíadas, por denúncias da ONU e centenas de vídeos na internet.
Negociações individuais, indenizações irrisórias, tortura psicológica e covardia
Em processos de remoção de favelas, é praxe da Prefeitura do Rio manter negociações individuais com os moradores. Ou seja, não se negocia com uma associação ou comissão, mas com cada família. Quando os moradores se organizam para ir juntos às reuniões, elas acabam sendo desmarcadas pelos agentes municipais. É a maneira encontrada para minar a comunidade e evitar que haja resistência organizada e coletiva. Assim que algum morador aceita sair de sua casa, a Prefeitura costuma derrubá-la deixando os escombros para trás, abalando estruturalmente as casas restantes e emocionalmente os que não cederam; criando uma situação de caos.
A Prefeitura costuma também dizer aos que resistem que quanto mais esperarem menor vai ser a indenização, que eles vão ser reassentados num bairro ainda mais distante, ou que simplesmente vão acabar sem nada, já que seriam invasores e o fundo para reparação teria um limite determinado. É a tortura psicológica relatada em diversas comunidades e amplamente documentada, em casos como Metrô-Mangueira, Estradinha, Largo do Tanque, Providência, Vila Harmonia, Vila Recreio II, Vila Autódromo, apenas para citar alguns. As indenizações costumam ser baixíssimas, já que o município paga apenas as benfeitorias (paredes, telhado, janelas), não reconhecendo a posse da terra mesmo quando ocupada há mais de cinco anos, como prevê a lei.
Escombros e propaganda política do prefeito Eduardo Paes na comunidade em 2012. |
“Quando a gente menos esperava, no dia 23/12, chegaram
as máquinas e começaram a derrubar as coisas. Foi o presente de Natal que a
Prefeitura deu pra comunidade, começaram a quebrar tudo no final do ano sem que
a gente esperasse”. Laércio Chagas, ex-morador da Vila Recreio II.
Uma outra prática da Prefeitura do Rio é atuar em datas
festivas. As famílias do Largo do
Tanque foram removidas no Carnaval de 2013, a remoção do Metrô-Mangueira está
acontecendo em período de férias e as casas da Vila Recreio II foram destruídas no Natal de 2010. Em reunião com os moradores do
Recreio, a Prefeitura chegou a prometer que os deixaria passar as festas de fim
de ano em suas casas, mas no dia 23 de dezembro as máquinas chegaram e
começaram a derrubar tudo. Foi o presente de Natal que a Prefeitura deu para as
famílias da comunidade: terminarem o ano sem ter onde morar.
O caso do Metrô-Mangueira no entorno do Maracanã
Em agosto de 2010, agentes municipais começaram a marcar as habitações sem aviso prévio, fazer negociações individuais e derrubar as casas. As primeiras 107 famílias, das cerca de 700 da comunidade, foram reassentadas em Cosmos, a 50 quilômetros de distância dali. As outras exigiram outro tratamento. Pela resistência dos moradores e a proximidade do Maracanã, o caso ganhou repercussão mundial e em 2011 estava no principal jornal da Inglaterra, o The Guardian. As famílias acabaram conquistando o direito de ser reassentadas em um local próximo, nos empreendimentos Mangueira I e II, e no Bairro Carioca, em Triagem.
Pintura de artista chileno que por anos estampou um dos muros do Metrô-Mangueira. |
Durante esse tempo, os moradores que ficaram no
Metrô-Mangueira conviveram com lixo, ratos e insetos que se proliferavam nos
escombros deixados pelos tratores. Como as negociações passaram a ser mais
lentas, a Prefeitura não conseguia demolir as casas imediatamente e o local
ficou abandonado. Em 2012, as famílias tiveram que suportar até placas da campanha de reeleição do prefeito Eduardo Paes colocadas sobre os escombros. A
prática de manter negociações individuais fez com que as casas fossem
reocupadas por famílias sem-teto à medida que os antigos moradores eram
remanejados.
Moradia tratada como caso de polícia
Após as manifestações de junho de 2013, o prefeito Eduardo Paes fez uma caravana nas comunidades do Rio de Janeiro para tentar mudar a sua imagem, desgastada com os atos. O prefeito foi ao Metrô-Mangueira e prometeu que aqueles moradores que ocuparam as casas vazias não ficariam desassistidos, receberiam aluguel social de R$ 400 e seriam cadastrados em programas sociais. O mínimo que a Prefeitura de uma cidade como o Rio de Janeiro pode fazer com quem precisa de assistência social. A reunião deixou os moradores mais tranquilos em relação ao seu futuro.
“Foi desumano o que eles fizeram. A moça acabou de sair
de dentro de casa e a máquina veio e derrubou. Nosso dinheiro é lixo? Porque a
gente pode ser pobre, mas a gente contribui pras coisas. A gente abre um
crédito, paga um monte de imposto, não é?”. Daiane Heizer, moradora do
Metrô-Mangueira.
Polícia tenta remover moradores de suas casas na favela do Metrô-Mangueira. (foto: Francisco Chaves) |
Mas na terça-feira, 7 de janeiro de 2014, as famílias foram
surpreendidas com a ação de tratores, que chegaram a derrubar algumas casas, e
da polícia. A revolta da população ganhou repercussão mundial e a Prefeitura
covardemente se escondeu. Na quarta-feira, advogados voluntários faziam o
cadastro e pediam cópias de documentos para moradores. Isso mesmo. Voluntários
cadastravam moradores. A Prefeitura da cidade da Copa do Mundo e das Olimpíadas
sequer enviou um assistente social ao local. Como de costume na favela, o único
representante do poder público era a polícia. Os voluntários esperavam no mesmo
dia fazer uma reunião com o secretário de habitação, Pierre Batista, mas ele
não os recebeu. A reunião acabou acontecendo no dia seguinte.
"Os prédios na Mangueira não são esmolas, são conquistas da nossa luta", diz mensagem deixada no muro do Metrô Mangueira. Primeiras 107 famílias foram reassentadas em Cosmos. |
Na quinta-feira (9), a Prefeitura do Rio pela
primeira vez se manifestou através de uma nota. Citou os locais de
reassentamento dos antigos moradores do Metrô-Mangueira e sorrateiramente
esqueceu de Cosmos, para onde ela gostaria de ter enviado as 700 famílias em
2010 mas não conseguiu, fruto da resistência daquela comunidade. O comunicado
diz que após uma reunião de representantes da Secretaria Municipal de Habitação
e da Subprefeitura com a Defensoria Pública, OAB e moradores foi decidido que
as famílias receberão o aluguel social até a entrega de imóveis do programa
Minha Casa Minha Vida. O mínimo. Exatamente o que foi prometido por Paes, mas
que mais uma vez só se efetivou após a mobilização dos moradores. Se tivessem
oferecido o mínimo desde o início, nada disso teria acontecido.
Onde será o espetáculo da Copa do Mundo?
O caso do Metrô-Mangueira demonstra como a Prefeitura do Rio é incompetente até para o que mais sabe fazer: remover famílias. Cem mil pessoas estão passando por processo de remoção no Rio de Janeiro. Destas, pelo menos 65 mil já perderam suas casas desde 2009. A maioria foi reassentada em bairros periféricos, como a Prefeitura gostaria de ter feito no Metrô-Mangueira. Se tudo isso aconteceu em 2014, a 500 metros do palco da final da Copa do Mundo do Brasil, dá para imaginar o que o brasileiro tem sofrido nas 12 cidades-sede da Copa para prepará-las para o espetáculo que está por vir. Mas está cada vez mais claro que o verdadeiro espetáculo vai acontecer do lado de fora dos estádios.
*Texto de Renato Cosentino. Trabalha na organização de direitos humanos Justiça Global e acompanha as remoções no Rio de Janeiro desde 2011 através do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas.