7.11.18

SOBRE COZINHAS DE SANTO E SAMBA

LUIZ ANTONIO SIMAS -

Um dos aspectos mais interessantes do complexo cultural do samba é a maneira como a comida está presente nos modos de convivência envolvidos na roda. A culinária que cerca os sambas tem fundamentos vinculados às sabedorias dos terreiros e ao papel que os alimentos exercem nos ritos sagrados das casas de santo.

O ato de dividir alimentos com as divindades e os ancestrais está presente em inúmeras culturas. Ele manifesta-se no Brasil nos candomblés, mas ultrapassa os limites dos terreiros e rompe as fronteiras entre o sagrado e o profano. A comida de santo chegou às mesas com força suficiente para matar a nossa fome cotidiana e apimentar os paladares.

Carybé. Vendedores de alimentos na Rampa do Mercado
A importância dos alimentos nos rituais é vinculada ao significado do moyoo (entre os bantos) e do axé (entre os iorubás). Trata-se da energia vital presente em todas as coisas e pessoas. Para que tudo funcione a contento, o axé deve ser constantemente potencializado. Nada acontece sem a reposição da força, em um mundo sujeito a constantes modificações. Uma das formas mais eficazes de dinamizar o axé em benefício de nossas vidas é dando comida aos ancestrais e aos deuses; que por sua vez retribuem a oferenda em forma de vontade de vida, propiciando benefícios aos que ofertaram.

Uma pequena lista com alguns pratos e temperos ofertados aos voduns, inquices e orixás, pode exemplificar melhor isso: abará, caruru, pipoca, canjica branca, axoxô (prato feito com milho vermelho e lascas de coco), feijoada, acaçá, omolokum (uma delícia feita com feijão fradinho e ovos), acarajé, amalá, farofa, inhame, dendê, cará, camarão seco, mel de abelhas, frutas etc.

A história desses alimentos não comporta purismos. A feijoada, por exemplo, vincula-se à vasta tradição de pratos que misturam tipos diferentes de carnes, legumes e verduras. O cozido português e o cassoulet francês partem deste fundamento de preparo. O feijão preto trepador, o mais famoso, é originário da América do Sul. De uso difundido entre os guaranis, seu cultivo disseminou-se pela África e Ásia a partir dos navegadores europeus que chegaram às bandas de cá. A farinha de mandioca também é de origem americana e fez percurso similar. A feijoada desenvolveu-se no Brasil como um prato cotidiano que foi consagrado nos terreiros e passou a ser ofertado a Ogum, orixá da guerra e das tecnologias. É o profano sacralizado e o sagrado profanado (com cerveja, de preferência) nas giras e batucadas.

A cozinha em que os alimentos são preparados nos terreiros e nos sambas é um espaço ritual por onde circulam saberes passados por gerações. A faca ou a colher que caem no chão durante o preparo, a louça quebrada, o sal derramado, são sinais que indicam os rumos da preparação das comidas; capazes de determinar que tudo precisa ser refeito em bases diferentes. Numa cultura em que o saber é transmitido oralmente, a cozinha é também um espaço para a contação de histórias, a lembrança dos mitos e a saudade dos mortos.

Outra função da comida é a de promover a integração entre a comunidade dos terreiros e das rodas e o público externo. Todos os xirês, as festas públicas, normalmente culminam com a distribuição das comidas encantadas para os presentes, em ampla comunhão que busca fortalecer o axé da coletividade e de todos os que compareceram ao festejo. Como no samba dos mais velhos.

Na fascinante encruzilhada entre o sagrado e o profano, do alimento compartilhado como forma de manutenção da energia vital, obtenção de dadivas e conexão com a ancestralidade, nascem as comidas do santo e do samba. Mesmo que os fundamentos tenham se diluído, a festa vivenciada entre sons, corpos, caldos e feijões guarda elementos de uma poderosa evocação ao mistério, ainda que não saibamos disso: batido na palma da mão, percutido no couro dos tambores, versado na rima certa, o samba vai chamar quem mora longe.

Ninguém come sozinho nos ritos da roda. (via Facebook)