5.10.18

O BISPO E O CAPITÃO

LUIZ ANTONIO SIMAS -


Instituições religiosas criam laços de pertencimento, redes de sociabilidade, comunidade de afetos, senso de coletividade, sensação de proteção social, sentido de mundo, etc. Destacar isso é pertinente e ajuda bastante no debate, inclusive do ponto de vista das estratégias eleitorais.

Cabe ponderar, todavia, que não são apenas igrejas, terreiros, mesquitas e sinagogas que criam isso: torcidas organizadas, escolas de samba, clube de adoradores de vinho, comandos criminosos, sociedades secretas, máfias, fã clube de astro do rock, grupo do churrasco da esquina, pelada semanal de veteranos, clubes de baloeiros, fanáticos por Star Trek fantasiados com orelhas de Spock e líricos botafoguenses que viram o título de 1989, também estabelecem laços de pertencimento, senso de coletividade e afetos compartilhados a partir de elementos comuns.

É claro também que falar em evangélicos como um grupo homogêneo encobre, para ficar apenas no que é mais simples, diferenças teológicas, percepções diversas da Bíblia, maneiras distintas de se encarar temas sociais relevantes, etc.

A pauta colocada, portanto, é pensar a IURD e seu projeto de poder, agora que o Bispo Macedo fechou explicitamente com Bolsonaro.

Na disputa pelo mercado da fé, e na construção de pertencimento entre os seus membros, a IURD adota como uma de suas diretrizes fundamentais a destruição de outros laços de pertencimento, a partir de uma visão binária entre o bem e o mal. Quando escreveu “Orixás, Caboclos e Guias”, o livro que fundamenta a visão da IURD sobre as religiosidades brasileiras de matrizes afro-ameríndias, tema que me interessa diretamente, o Bispo Macedo fundamentou a doutrina de que essas religiosidades, e os saberes a elas vinculados, são manifestações satânicas que precisam desaparecer. É uma doutrina que a IURD abraça até hoje em seus cultos.

Macedo defende no livro que diversos vícios, doenças, brigas e tragédias são originárias do culto a espiritualidades da umbanda e do candomblé. Diz ainda, literalmente, que as “seitas demoníacas” de origem africana são as grandes responsáveis pelas mazelas de Brasil e pelo problema da dependência química entre seus membros.

A teologia da IURD, portanto, tem como um de seus alicerces a cruzada contra as práticas culturais e religiosas vinculadas aos saberes de origem africana/indígena, contrapondo a eles - que gerariam desgraças entre seus praticantes - uma teologia da prosperidade fundamentada na ideia da felicidade terrena.

Anos depois do "Orixás, caboclos e guias", Macedo, com Carlos Oliveira, publicou o "Plano de Poder: Deus, os cristãos e a Política". Ali está tudo explicado. O Brasil do bispo depende da aniquilação de qualquer pluralidade.

Desconsiderar isso em ponderações sobre as sociabilidades que a IURD engendra entre seus membros é, no mínimo, complicado. Há uma instância de sociabilidade que se estabelece pela desqualificação de outras formas de sociabilidades e saberes. Ela é, inclusive, racista, já que opera no campo simbólico da depreciação das práticas e dos saberes que não são cristãos.

Constatar um lado perverso da rede de sociabilidades que a IURD cria, por outro lado, não pode significar a demonização dos seguidores da igreja (para usar uma ideia da própria igreja) ou a generalização da ideia de que seus seguidores são ignorantes desprovidos de tino para perceber o mundo. Há nuances complexas aí, inclusive na relação com o voto. A IURD conseguiu criar laços de pertencimento entre seus membros a partir de uma rede de assistência atuante.

Não há como desconsiderar, todavia, e esse é o foco que proponho aqui, que essa construção de sociabilidades se fundamenta em boa medida no horror às diferenças, no reacionarismo mais tacanho e no racismo simbólico expresso na satanização de saberes outros.

No caso da IURD, o pertencimento pelo afeto (entre seus pares) e pela desqualificação do outro (os que não são seus pares) gera fundamentalismo, destruição de terreiros, chute em santa, preconceito contra minorias, políticas públicas retrógradas, ameaças ao caráter laico do estado, cruzada moral e o desejo de um Brasil fundamentalista e monocromático. Leiam o bispo e percebam que é disso que se trata.

Um projeto fundamentalista de estado seria a cereja desse bolo confeitado desde a colonização. O outro precisa morrer. Faz todo sentido, portanto, a aliança entre a bíblia do bispo e o fuzil o capitão.

O fascismo se alimenta do desejo de destruição da alteridade. Ao mesmo tempo, depende da existência desse outro que sustenta seu discurso de destruição. O fascismo se alimenta do desejo de matar, mas seu destino é o suicídio. O horizonte do fascismo sempre é a morte. Do outro e (ao matá-lo) dele mesmo.

O Mein Kampf brasileiro já está escrito e publicado faz tempo. Derrotá-lo é nossa tarefa civilizatória e vai além das eleições. Demanda um compromisso cotidiano: político, poético, ontológico, epistêmico, rítmico, corporal, pedagógico...

A luta do terreiro contra a barbárie (e quem quiser saber o que entendo como "terreiro" - algo muito distinto do espaço do culto religioso - pode recorrer ao Fogo no Mato, livro que escrevi com Luiz Rufino) é o compromisso do nosso tempo.

* Fonte: Facebook