21.2.18

DO BICHO À MÁFIA - PARTE 8

REDAÇÃO -

Extraído do livro “Os porões da contravenção – Jogo do bicho e ditadura militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado”, de Aloy Jupiara e Chico Otávio.


No início dos anos 1980, um crime atraiu a atenção de todos. O corpo do jornalista Alexandre Von Baumgarten foi achado boiando no mar, no Recreio dos Bandeirantes, em estado adiantado de decomposição.

Dono da revista O Cruzeiro desde 1979, havia saído da Praça XV, centro do Rio, com sua esposa, para pescar de barco. Não retornaram mais.

Entretanto, um fato fez com que o destino desse crime fosse diferente dos demais. Ele deixou uma carta: “Nesta data (28 de janeiro de 1981), é certo que a minha extinção física já tenha sido decidida pelo SNI. A minha única dúvida é se essa decisão foi tomada em nível do ministro-chefe do SNI, general Octavio Aguiar de Medeiros, ou se ficou no nível do chefe da agência central, general Newton Cruz.”

Foi apenas o primeiro parágrafo de uma longa exposição de nomes e acusações, redigido Von Baumgarten quase dois anos antes que seus temos se materializassem, finalmente. Providenciou 10 cópias do mesmo, tendo uma delas chegado à imprensa, no caso, à revista Veja.

Como ocorria comumente naquele período, apesar das evidências de homicídio – três marcas de tiro. Dois na cabeça e um no abdômen -, foi enterrado como afogado. Após a publicação, as autoridades foram obrigadas a investigar o caso.

Baumgarten era já há tempos informante do SNI. Com o apoio do governo, adquiriu a revista O Cruzeiro, onde cerrava fileiras ao lado dos militares. Por meio de seus contatos, conseguia cartas destinadas a empresários, de forma a conseguir contratos de publicidade. Quando constatou que a jogada não estava rendendo os dividendos pretendidos, pediu ajuda financeira ao governo. Nunca conseguiu.

Um dos acusados na missiva de Baumgarten foi o coronel Ari de Aguiar Freire, o Careca. Integrante da “turma da caneta” do SNI, grupo de especialistas que rejeitavam os métodos brutais tradicionais, chegou a ser investigado após o caso do Rio Centro, mas foi inocentado.

O jornalista continuou, acusando Careca de contrabando, de receber propina de Climério Veloso, dono da Casas da Banha, dentre outros crimes.

Aguiar foi “punido”. Deixou as trincheiras do SNI e foi nomeado assessor da delegação brasileira junto à OIT – Organização Internacional do Trabalho, em Genebra. Nunca foi visto em reuniões de trabalho na Organização.

Baumgarten citou mais um nome, o do coronel Ari Pereira de Carvalho, abrigado na Embaixada Brasileira na Argentina. Capitão Guimarães também foi implicado nas investigações. Declarou aos jornalistas que “Acho que envolveram o meu nome porque sou muito conhecido por dar apoio às artes populares.” Sobre sua relação com o jogo do bicho: “Minha relação com o jogo do bicho é apenas de estudioso.”

Ari de Aguiar conciliava suas férias forçadas na Suíça com o comando da Irmandade Santa Cruz dos Militares, espécie de associação que reunia ex-integrantes da repressão. Dezenas de ex-agentes lá participavam, como Perdigão. As reuniões costumavam ocorrer no restaurante Angu do Gomes, na Praça Mauá, entre membros da Scuderie Le Cocq, prostitutas, bicheiros etc. Era lá que se decidiam os assassinatos, políticos ou não, atentados a bomba para incriminar “comunistas” etc.

Ainda em 1981, outro crime chocou a cidade. Com nove tiros, o ex-policial e ex-paraquedista do Exército Mariel Maryscotte de Mattos, o Ringo de Copacabana, caiu derrotado. Chegava ao fim uma vida de pontuada por crimes, ambição e audácia. Mariel servira no DOI da rua Barão de Mesquita em 1972, ao lado de Guimarães. Sua fama era de “justiceiro da Zona Sul”.

Ocorreu em meio a uma guerra travada nas rua do Rio. De um lado, os que apoiavam a entrada de Mariel no mundo da contravenção; de outro, os que discordavam, como Capitão Guimarães. O motivo da discórdia era a acusação de que Mariel matara o bicheiro José Batista da Costa, o China da Saúde.

Quando assassinado, Mariel estava em conflito com seus sócios Marcos Aurélio Corrêa de Mello, filho do bicheiro Raul Capitão, e Wilson Chuchu, filho do bicheiro Manuel Nunes Areas, o Manola.

Mariel cobiçava ser como seu ídolo, Capitão Guimarães.

Se Guimarães foi acusado e extorsão a contrabandistas quando militar, Mariel não agiu de modo muito diverso: foi apontado como chefe de uma quadrilha de falsificação de cheques de viagem e como executor do assassinato de Odair Andrade Lima, ladrão de carros achado crivado de balas e com um cartaz do Esquadrão da Morte acima da cabeça. Foi condenado a trinta anos na cadeia.

Foi preso no complexo Frei Caneca, depois transferido para a Ilha Grande. Lá, circulava livremente, até que conseguiu escapar da ilha. Suspeitou-se que usara um “iate de contrabandistas” para empreender a fuga, inicialmente. Mas pouco após chegaram-se aos nomes: Capitão Guimarães, Luiz Fernandes Brito, capitão do Exército, e major Wilson Crespo de Oliveira, da PM.

Meses depois, Mariel foi recapturado em Marília, São Paulo. Preso, saiu sob liberdade provisória. Passou a estudar jornalismo, prometeu deixar o passado sangrento para trás, mudar de vida. Mas a verdade é que, mesmo preso recebia propina de bicheiros, as “taxas” de proteção.

Guimarães passou-se por amigo e aliado de Mariel até as vésperas de sua morte. Guimarães sabotou uma compra de pontos de bicho que Mariel pretendia em Niterói. Mariel, inconformado, travou discussão com um capanga de Guimarães. O caso evoluiu para o homicídio de um dos coletores de Guimarães, em Piratininga.

Soube-se que, dias antes do assassinato de Mariel, Guimarães se reuniu com seus seguranças. O grande suspeito pela morte foi o detetive Francisco Queiroz Ribeiro, o Chiquinho, gerente de China da Saúde. Chiquinho seria assassinado no início de 1983. Mas foi apenas um capítulo de uma longa matança, que vitimou Wilson Chuchu e Marquinho.

Segundo o delegado Cláudio Guerra: “A sua execução (Mariel) foi uma queima de arquivo determinada por Perdigão. Não participei dessa operação, mas sei como ocorreu. Ao que parece houve uma votação igual à que selou o destino do delegado Fleury. Os executores de Mariel eram policiais civis e militares das Forças Armadas. A exemplo de Fleury, Maryscotte serviu muito ao SNI de Perdigão, e acabou tendo o mesmo destino do delegado.” Suspeitava-se de que Mariel também estivesse atuando no tráfico de drogas.

Eliminados todos os concorrente, tendo o caminho limpo diante de si, Guimarães procurou novos ares: em breve, seus domínios incluiriam o Espírito Santo. (Continua!)