24.2.18

DO BICHO À MÁFIA - PARTE 11

REDAÇÃO -

Extraído do livro “Os porões da contravenção – Jogo do bicho e ditadura militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado”, de Aloy Jupiara e Chico Otávio.

Boni de Oliveira com Anísio Abraaão David.
Em flagrante contraste com seus anos de ouro em meados dos anos 1970, no carnaval de 1981, Anísio não desfilou. Ainda na área de concentração, anterior à entrada na Passarela do Samba, Anísio foi vaiado, foi xingado. Ouviu gritos: “Oh, Anísio, cadê o Jatobá?”, “Cadê o Jatobá? Cadê o Jatobá?, “Assassino!”. Anísio se limitava a xingar de volta: “Tá na casa da mãe!”.

Com medo de contaminar a Escola com as ofensas desferidas contra di, abrigou-se no seu camarote.

Anísio recebia uma sequência de golpes fortes por conta do duplo seqüestro e assassinato do pintor de paredes Misaque José Marques e do publicitário Luiz Carlos Jatobá. Anísio conseguia envernizar sua imagem de bicheiro por meio da Beija-Flor e de sua história vitoriosa na Escola, mas cultivar uma boa imagem sendo acusado de seqüestro e homicídio poderia ser demais.

O crime ocorreu em Piratininga, região de praiana de Niterói. As investigações apontavam como motivo, vingança; a execução teria sido levada a cabo por policiais, a mando de Anísio. A vingança era motivada pelo furto de jóias e dinheiro da casa do contraventor, dias antes. O objeto mais sensível foi um cordão de ouro com um medalhão. Anísio afeiçoava-se tanto com o objeto que teria oferecido recompensa em troca.

As vésperas do desfile de 1981 foram marcadas pela visível irritação de Anísio com seu indiciamento no caso Misaque-Jatobá. A imprensa não largava do seu pé. O recente passado vitorioso – Beija-Flor foi campeã em 1976-77-78 e 1980, empatada com a Portela; vice em 1979 – não poderia ser manchado por causa de crimes cometidos pelo seu patrono.

Joãozinho Trinta trouxe como enredo para 1981 “A oitava das sete maravilhas do mundo”. Esse tema buscava explorar o sucesso das Escolas de Samba ao pô-las como a oitava Maravilha. A grandiosidade dos carros-alegóricos era inédita.

Apesar do desfile brilhante, a Escola de Nilópolis ficou em segundo lugar. O título foi conquistado pela Imperatriz Leopoldinense. O enredo de Arlindo Rodrigues, “O teu cabelo não nega”, homenageando Lamartine Babo, tornou-a favorita do público.

Os problemas de Anísio durariam um pouco mais. Em 11 de maio, ele e cinco policiais tiveram a prisão preventiva decretada. Apenas se apresentou à justiça dois dias depois. Ficou preso até dia 20. Respondeu em liberdade.

Os corpos de Misaque e de Jatobá nunca foram encontrados. Em 1983, Anísio, denunciado como mandante dos crimes, foi absolvido. Três policiais foram sentenciados a três anos de prisão – depois reformada para quatro.

Pelos 10 anos seguintes, Anísio sofreria pequenos percalços, os quais superaria com relativa facilidade. O que ele não poderia prever era o Calvário que estava se aproximando. Deste, ele nunca se recuperaria totalmente. E esse Calvário tinha nome: Eliana Santos Muller de Campos, sua ex-esposa.

Eliana foi morta a tiros no dia 12 de agosto de 1991, ao lado do namorado, Hercílio Cabral Ferreira, em Nilópolis. Antes, porém Eliana deixou uma carta, guardada com a família de Hercílio, em que contava tudo o que sabia sobre a vida do ex-marido. Sua missiva acusava Paulo Crespo, o Paulinho, como um dos assassinos no caso Misaque-Jatobá. Sobre Anísio, ela escreveu: “Sabia de tudo.”

Eliana morreu aos 44 anos. Hercílio conta 27, na época. Foram mortos em frente de casa. Após pararem para conversar com um amigo, outra pessoa se aproximou e desferiu os disparos. Um menor, apelidado de Pixinguinha, testemunhou a cena. O menor também foi atingido por um disparo no olho, fingiu-se de morto e escapou com vida.

Antes do homicídio, Eliana comparecera duas vezes à delegacia, denunciando ameaças contra sua vida. Os denunciados foram seu próprio pai e seu irmão. Ambos eram empregados de Anísio no jogo do bicho. Hercílio tinha a mesma atividade, até começar seu envolvimento com a mulher do chefe e ser demitido.

Eliana expôs tudo em uma carta de nove páginas e pediu que somente fosse publicada nos jornais caso algo ocorresse com ela e o namorado. Eles seriam assassinados apenas dois meses depois. Além das denúncias referentes aos caso Misaque-Jatobá, Eliana denunciou Anísio no homicídio do policial Mariel Maryscotte e de ter se iniciado no crime como traficante de drogas. Em suas próprias palavras: “Com 16 anos, enrolei muita maconha, para que ele e eu tivéssemos uma sobrevivência e vendíamos...”

O envolvimento com Hercílio somente ocorreu após sua separação de Anísio. Este irrritava-se ao vê-los juntos. Anísio chegou a exigir que eles deixassem o município, mas aceitar ameaças não era do feitio da ex-mulher.

As denúncias que Eliana havia registrado na 57ª DP deram início à persecução dos criminosos, levando ao indiciamento do pai e do irmão de Eliana: Dauro e Raul. Após, Anísio apelou a sua rede de proteção oficial. O escrivão de polícia João Carlos Viriato atrasou o quanto pôde a liberação dos mandados de prisão. Pouco tempo depois, tornou-se Procurador-Geral do Município de Nilópolis.

Mas não durou muito. Dauro e Raul foram presos. Raul foi reconhecido por Pixinguinha.

Contudo, levar as investigações a cabo era virtualmente impossível. O secretário de Polícia Civil e de Justiça, Nilo Batista, e o diretor-geral da Delegacia da Baixada, delegado Hélio Luz, pediram a prisão temporária de Anísio. Segundo Luz: “Não há condições de a polícia investigar nada em Nilópolis com Anísio fora da cadeia. Seu tráfico de influência é muito grande, inclusive na própria polícia. Queremos evitar possíveis subornos e intimidações de testemunhas”.

Pouco mais de um mês após o homicídio de Eliana, Nelson Abraão David se suicidou com um tiro na cabeça. Deixou um bilhete: “Peço perdão aos meus amigos, à minha família, não consigo escrever nada...”

Embora tenha sido surpreendido por esses eventos trágicos, do final do julgamento não trouxe muitas surpresas: o julgamento ocorreu em Nilópolis; Anísio não foi indiciado; Dauro foi absolvido; Raul foi sentenciado a 24 anos de prisão, pela morte de Hercílio e pelo olho perfurado de Pixinguinha; ninguém respondeu pelo assassinato de Eliana. (Continua!)