25.6.17

O DRAGÃO DA MALDADE CONTRA O SANTO GUERREIRO?

LUIZ ANTONIO SIMAS -


Os ânimos acirrados do imbróglio entre o prefeito do Rio de Janeiro e o carnaval geram, compreensivelmente, simplificações de todos os tipos. Proponho aqui mais algumas ponderações para enriquecer o debate, sintetizando algumas ideias que venho expondo há certo tempo em redes sociais, na coluna que mantenho no site da Rádio Arquibancada e em artigos e entrevistas.

Escolas de samba criam laços de pertencimento, redes de proteção e formas de sociabilidades. Igrejas também criam. É claro também que falar em evangélicos como um grupo homogêneo é como singularizar a ideia do "ser sambista": A generalização encobre, para ficar apenas no que é mais simples, diferenças teológicas, percepções diversas da Bíblia, maneiras distintas de se encarar temas sociais relevantes (direito das minorias, aborto - a Universal admite - educação laica ou religiosa, etc).

Existe no Brasil uma disputa escancarada pelo mercado da fé, diretamente vinculada ao aumento do número de fieis de cada credo e com fortes repercussões na política institucional. Neste sentido, é recorrente que algumas instituições religiosas adotem como uma estratégia na disputa por este mercado a destruição de outros laços de pertencimento, a partir de uma visão binária entre o bem e o mal.

A IURD arrebanhou parte significativa de seus fiéis entre ex-umbandistas e adeptos dos cultos aos orixás, inquices e voduns. No embate ideológico para conquistar estes fiéis, surgiu o “Orixás, Caboclos e Guias”, livro de Edir Macedo fundamentado na doutrina de que as religiosidades afro-brasileiras, e os saberes a elas vinculados, são manifestações satânicas.

Na divulgação do livro, edição de 1990, está escrito o seguinte:

"O bispo Macedo tem desencadeado uma verdadeira guerra santa contra toda obra do diabo. Neste livro, denuncia as manobras satânicas através do kardecismo, da umbanda, do candomblé e outras seitas similares; coloca a descoberto as verdadeiras intenções dos demônios que se fazem passar por orixás, exus, erês, e ensina a fórmula para que a pessoa se liberte do seu domínio."

Há uma instância de sociabilidade entre os membros da IURD que se estabelece, portanto, pela desqualificação de outras formas de sociabilidade e saberes. Ela é, inclusive, racista, já que opera no campo simbólico da depreciação das práticas e dos saberes afro-ameríndios.

É aí que entra o carnaval.

Vale ressaltar que a cruzada contra o carnaval não é invenção recente. O projeto civilizatório mais permanente das elites brasileiras - inscrito no tempo e no espaço - é o da incessante criação de estratégias de controle e domesticação dos corpos. O fim da escravidão exigiu redefinições nestas estratégias de controle e coincidiu com os projetos modernizadores que buscaram estabelecer, a partir da segunda metade do século XIX, caminhos de inserção do Brasil entre os povos ditos civilizados.

O controle dos corpos se articulou permanentemente ao projeto de desqualificação das camadas historicamente subalternizadas como agentes de invenção de modos de vida. Produtoras de cultura, enfim. Este projeto de desqualificação da cultura atuou em algumas frentes, especialmente na repressão aos elementos lúdicos e sagrados do cotidiano dos pobres - notadamente os afro-descendentes - e de tudo aquilo, enfim, que resiste ao confinamento dos corpos, criando potência de vida; como é o caso do carnaval. Os ataques que o funk vem sofrendo nos dias atuais operam neste mesmo campo de jogo.

Ao longo da história, a sobrevivência potente do carnaval deparou-se com pelo menos três instâncias que tentaram domar a festa, cada uma a seu modo:

A repressiva, representada pelo poder público e seu aparelho de segurança pública.

A moral, representada pelo imaginário de festa de depravação dos costumes, segundo os conservadores, e de festa alienante e despolitizada, segundo setores progressistas;

A financeira, representada por instâncias (grandes empresas, mídia, indústria do turismo, contravenção, etc.) que veem a festa como um espaço legitimado pela circulação de capitais, difusão de padrões de consumo, propaganda de marcas, lavanderia de dinheiro escuso e similares.

Feitas estas ponderações, é importante constatar que o bispo Crivella opera em algumas frentes.

1 - Investe na dicotomia: bem X mal; saúde X carnaval; creche X escola de samba; responsabilidade pública X irresponsabilidade do folião...

2 - Flerta com interesses de grupos privados que querem controlar o negócio do carnaval e que estão francamente disputando isso; prometendo afastar o poder público do negócio, que passará a ser gerido pelos interesses exclusivos do mercado.

3 - Aposta na redução drástica do número de escolas de samba existentes. O ideal, nesta concepção, é que sobrem poucas escolas: aquelas que conseguirem se vender como agremiações capazes de atrair os capitais da indústria do entretenimento, diluídas em padrões uniformes, inclusive de performance, perdendo muitas vezes a vitalidade transformadora e as especificidades dos ricos complexos culturais que se desenvolveram em torno delas.

4 - Busca consolidar o apoio de grupos reacionários sensíveis ao discurso moral da peleja contra a depravação, tentando, inclusive, ampliar o arco de apoio entre os evangélicos que não simpatizam com a IURD.

5 - Assume a dianteira de uma batalha no campo das subjetividades contra o complexo cultural brasileiro de origem africana e ameríndia, buscando realizar a guerra santa contra os demônios preconizada por Edir Macedo em seu livro seminal (acima citado).

6 - Aposta no desgaste que as escolas de samba experimentam, em boa medida por culpa delas mesmas. As agremiações - por uma série de problemas que já listamos exaustivamente - isolaram-se em bolhas, casulos e camarotes vips, acreditaram no canto da sereia de que seriam aceitas nos salões e perderam parte considerável do campo afetuoso de proteção social que já tiveram em outras épocas entre os cariocas.

Teria outras ponderações a fazer, mas aos poucos vamos soltando as ideias. Finalizo propondo duas reflexões ao povo do carnaval:

1 - Como podemos nos situar diante do jogo dicotômico que nos está sendo proposto? Tentaremos justificar a existência do carnaval pelos dados objetivos da economia criativa e do retorno financeiro que a festa traz para a cidade (corroborando com o discurso de que o carnaval se justifica porque é um negócio lucrativo) ou vamos disputar as subjetividades e afetos que a festa propicía no campo poderoso da cultura? É possível trilhar os dois caminhos?

2 - Continuaremos olhando para nosso próprio umbigo e nos contentaremos com algum acordo de gabinete, ou pretendemos assumir algum protagonismo na luta mais ampla que precisa ser travada contra as forças reacionárias - em diversos níveis - que pretendem destroçar um complexo de saberes, aniquilando o Brasil como um campo de possibilidade de elaboração de existências e corpos soberanos?

O jogo começou. (via Facebook)