LUIZ ANTONIO SIMAS -
Objetivamente há uma disputa sobre o "negócio do carnaval" - envolvendo cifras, subvenções, rentabilidades, acordos com a indústria do turismo e que tais - no imbróglio entre a prefeitura e as escolas de samba. Isso é claro, deve ser dimensionado, mas me parece insuficiente. Há uma disputa no campo das subjetividades sobre a cidade que não pode passar desapercebida.
Boa parte da vitalidade da cultura do Rio de Janeiro veio da rua. Entre pernadas, batuques, improvisos, corpos dançando na síncopa, gols marcados na várzea, gudes carambolando e pipas cortando os céus, a tessitura da cidade foi se desenhando nas artes de inventar na escassez.
Foi assim que certo carioca - sobretudo aquele que é filho da diáspora - zuelou tambor, jogou capoeira, fez a sua fé no bicho, botou a escola na avenida, a cadeira na calçada, o despacho na esquina, a oferenda na mata, a bola na rede e o mel na cachoeira.
É este complexo de saberes e sociabilidades da rua que me parece estar também em jogo no fundo do tacho do debate sobre o Carnaval.
É este embate no terreno escorregadio das subjetividades, da elaboração de símbolos e das construções do imaginário, que está anunciado em um campo cognitivo feito de entrelinhas, rumores, silêncios, estratégias de controle dos corpos e discursos indiretos. A nossa dificuldade de perceber isso - e o que pode representar para a cidade a médio prazo - é assustadora.
O ataque ao Carnaval faz parte deste processo e é seu marco simbólico. Tirar de uma escola de samba seu potencial disparador de pluralidades culturais é estratégico para o processo de domesticação dos corpos e mentes cariocas. A ideia - é o que especulo - não é acabar com as escolas de samba. É terminar a obra do enquadramento das agremiações (e apenas as do grupo especial; as outras tendem ao desaparecimento) à condição de empresas turísticas de entretenimento ligeiro, destituídas de suas referências fundamentais como instituições de ponta da cultura popular. E tem gente dentro das escolas de samba que não percebe - ou percebe e concorda - com isso.
É o mesmo recorte disciplinador, higienizador e aniquilador que pretende, simplesmente, liquidar as pulsões festeiras e potencialmente subversivas da rua; seja pela repressão, seja pelo enquadramento como negócio.
O velho embate colonial pelo controle dos corpos - fundamentado na ideia do corpo em pecado que só pode encontrar a redenção na evangelização e no corpo festeiro que deve ser disciplinado enquanto ferramenta produtiva do trabalho, inclusive pela própria indústria da festa e aproveitado por ela - continua firme e mais evidente.
Me surpreende como não somos capazes de enxergar - ou saber lidar com - esse caroço debaixo do angu indigesto. Os vícios das epistemes colonizadas é uma barreira que nos impede de levar esse embate para o nosso terreno fértil dos corpos de mandinga.
Não é só sobre escola de samba. Não é só sobre Carnaval. É sobre aquilo que, difusamente, ousamos chamar ao longo dos tempos, no terreiro carioca, de liberdade. (via facebook)