8.12.16

DO DÉFICIT PÚBLICO E DA DÍVIDA PÚBLICA

JOSÉ CARLOS DE ASSIS -

Preliminar teórica

A dívida pública está intimamente vinculada ao sistema capitalista. Como a acumulação do capital não se converte imediatamente em investimento produtivo, é necessário um instrumento confiável de acumulação financeira para fazer a ponte entre poupança financeira e investimento real. Esse papel é desempenhado pela dívida pública, que funciona como um sifão financeiro relacionando aplicações e saques, e mantendo sempre um colchão de amortecimento que aparece nas estatísticas como estoque da dívida pública.

Nesse sentido, a dívida pública não precisa de ser paga, mas simplesmente gerenciada. O instrumento de gerenciamento é a política monetária, através da taxa de juros e de sua relação com a política fiscal. Quando, em tempos normais, um governo tem que recorrer ao déficit público, isso necessariamente tem impacto na dívida pública porque ele tem que lançar títulos de dívida pública no mercado – ou simplesmente emitir moeda. Por isso, essa ação de endividamento fiscal não necessariamente resulta em aumento da dívida pública, mas num mixed entre aumento de dívida pública e expansão monetária.

Dado que a institucionalidade fiscal-monetária brasileira, por imposição do FMI, não permite a emissão monetária direta para cobrir déficit público, o expediente normal seria seguir a institucionalidade norte-americana, pela qual o déficit público é financiado exclusivamente pela colocação de novos títulos no mercado, mas a taxa de juros de colocação desses títulos, para evitar chantagens do mercado, seria regulada por uma Selic independente do sistema financeiro privado. No nosso caso, a situação é outra. O BC aceita a chantagem do mercado e sobe a taxa de juros básica na medida em que o governo precisa de emitir novos títulos.

Aspectos práticos

Qual é a razão desse tipo de comportamento do BC, será que todos os membros do Copom são vendidos ao sistema financeiro privado? Certamente não. Eles apenas seguem uma cartilha difundida pelo FMI – este, sim, vendido ao sistema bancário mundial - entre os países em desenvolvimento ou emergentes segundo a qual todos devem ter um banco central independente, isto é, descolado do sistema fiscal. Com isso, a política monetária fica absolutamente subordinada aos interesses do mercado, e racionalizada através de uma equação matemática arbitrária e anti-científica chamada modelo de metas de inflação.

Considerando que a grande mídia brasileira, e sobretudo a especializada, aparentemente não consegue entender as complexidades desse sistema de favorecimento ao capital financeiro especulativo – que faz da dívida pública um instrumento exclusivamente de acumulação financeira, sem relação com a economia real -, a sociedade obviamente não tem qualquer possibilidade de entender a complexidade do processo. Em consequência, acha que nossas mazelas se devem à corrupção ou aos salários de parlamentares e juízes. Certo que esses privilégios são um abuso e um acinte ao povo, mas não é isso que causa o desemprego, a queda de renda e o desastre de dois anos seguidos de contração do PIB.

Voltando à dívida pública, ela deve ser vista como um estoque ajustado nas margens. Uma margem de entrada, pelos que estão acumulando capital, e uma margem de saída, pelos que estão usando o capital para investimentos. Não há risco de todos os detentores da dívida pública se apresentarem ao Tesouro ou ao BC e pedirem seu dinheiro de volta: a não ser que queiram fugir do país, buscando outros rendimentos líquidos mais rentáveis e mais seguros, que não encontrarão facilmente, terão de ficar aqui mesmo, explorando nossos trabalhadores que transferem a eles um pouco mais de suor que os estrangeiros.

De fato, somos campeões da tributação mais baixa do capital e com rentabilidade financeira mais alta. Isso é justificado cinicamente por uma inflação que só está alta porque mantemos um sistema de indexação e não controlamos preços de monopólios e oligopólios. Uma política de preços e de abastecimento mais justa liberaria a política monetária para reduzir os juros, e a redução dos juros induziria os empresários, desde que num ambiente de crescimento econômico e aumento dos salários, a saírem da especulação financeira produtivamente estéril e voltarem para a economia real, onde se gere emprego e acumulação de capital sadia.

*Assessor de Economia Política do Senador Roberto Requião. Doutor pela Coppe/UFRJ, autor de mais de 20 livros sobre economia política brasileira.