GERALDO PEREIRA -
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| Aqui um registro dos muitos papos entre o Poeta Manoel Bandeira e o jornalista Geraldo Pereira. Fonte: Arquivo Pessoal. |
Com o intuito de economizar saúde (necessidade inadiável), pouco
sai de casa nesse frio inverno paulista. Aproveitei parte do tempo e debrucei-me
sobre as obras completas de Manuel Bandeira, editadas em 1958, pela Aguilar.
São dois volumes em papel bíblia, de quando em quando, também consultava Manuel
Bandeira - Andorinha Andorinha, seleção de textos coordenados por Carlos
Drummond de Andrade, editado por José Olímpio Editora, e lançado, no dia 19 de
abril de 1966, em homenagem aos oitenta anos do poeta. Trata-se de um livro
carinhosamente organizado por Carlos Drummond - onde o editor declara “a
propósito ocorre-nos referir aqui uma confissão que há dois anos nos fazia
M.B.: ‘Não quero morrer sem um dia publicar um livro sobre o Carlos’”. Esse
Carlos, que em sua Ode, no cinquentenário de Bandeira, chamou-o “O poeta melhor
do que nós todos, o poeta mais forte”.
Quando cheguei ao mundo Bia e sua
irmã Maria Pequena já estavam morando na casa grande da minha vó, parece que tinham
perdido os pais, gente humilde, ela apegou-se muito a mim, dava-me banho,
mudava minha roupa, me alimentava, ensinou-me a rezar. Mais tarde, preparava-me
o lanche e me levava à escola. Talvez por isso, minha mãe fez dela minha
madrinha. Como foi bom ser o seu afilhado! Eu tinha tanto respeito por Bia como
por minha mãe. Antes de dormir pedia benção a ambas e beijava suas mãos.
Um dia falei de Bia para Bandeira
“eu acho que Irene é muito parecida com Bia”. Ergui a voz e declamei o seu
poema ‘Irene no céu’:
Irene preta
Irene Boa
Irene sempre de bom humor
Imagino Irene entrando no Céu:
- Licença meu branco!
E São Pedro Bonachão:
Entra Irene. Você não precisa
pedir licença.
O Poema de Bandeira, ‘Irene no céu’,
sempre que o leio me faz dar gostoso passeio no passado. Quem era Irene,
personagem do poema de Bandeira? Dou a palavra ao poeta: “Irene era uma preta,
que arrumava a minha casa do Curvelo. Passava o ano juntando dinheiro, para
vestir-se de baiana de carnaval, nas vésperas da qual, aliás, empenhava umas
joiazinhas que possuía. Se já não é viva deve estar mesmo no céu”.
Sempre tive uma imensa simpatia
pela produção literária de Manuel Bandeira, e, por ele pessoalmente.
Menino, na Rua da União, no
bairro da Boa Vista, no Recife, a casa onde nasceu Bandeira, exercia sobre mim,
um fascínio muito grande. Acredito que li centenas de vezes a placa com dizeres
alusivos ao poeta.
A exposição de suas obras,
acompanhada de muitas fotos, bem como da opinião da crítica, no Recife há sete
décadas, também, muito contribui para que essa admiração se ampliasse cada vez
mais.
Numa época em que a intelectualidade
brasileira se dividia entre a esquerda e a direita, não era fácil para um jovem
comunista, recitar Bandeira e ter sempre consigo os seus livros.
A esquerda tinha um time de alta
respeitabilidade, onde pontificavam, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Dalcídio
Jurandir, Caio Prado Júnior, Álvaro Moreira, Afonso Schmidt. A direita também
contava um excelente plantel, Manoel Bandeira, Alceu Amoroso Lima, Augusto
Frederico Schmidt, Gustavo Corção, Jorge de Lima, José Lins do Rego, eram dois
grupos de respeito.
O sectarismo, a disciplina
partidária, não permitia que a nossa sensibilidade fizesse ‘propaganda de um
inimigo declarado’.
Mais tarde no Rio de Janeiro,
conheci o poeta pessoalmente. Magro, usava um aparelho contra a surdez.
Trajava-se meio desengonçado, roupas compradas possivelmente nas lojas de
crediários. Olhos pequenos, que diminuíam ainda mais adiante das fortes lentes.
Sempre o vi andando às pressas
pelas movimentadas ruas da Esplanada do Castelo, no centro do Rio de Janeiro.
Caminhava o poeta, acredito eu, em busca de uma condução que o levasse à
Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil – onde ele pontificava como
titular da cadeira de Literatura.
Certo dia encarei. A pressa foi
derrotada fragorosamente por um longo bate-papo, com um convite para visitá-lo
em seu apartamento da Avenida Beira-Mar, pertinho do aeroporto Santos Dumont,
no centro da cidade.
Da primeira vez, o procurei, eram
quase 10 horas da manhã. Toco a campainha, vendo o litro de leite junto à
porta, disse comigo: “O poeta não está.” Nessa época, a poesia se fazia
presente em tudo. O leiteiro deixava o leite, o padeiro deixava o pão, na porta
dos seus clientes, o que nos permitia, uma ou outra vez, quando das noitadas,
mais por anarquia, nos fartarmos às custas alheias. Bandeira não tinha passado
bem à noite, disse-me. Abaixou-se para apanhar o leite, me antecipo. Pergunto-lhe
se quer comprar algum remédio: “Estou às suas ordens”. Agradece, e pede-me para
passar depois.
Quantas vezes passei, quantos
papos batemos, sinceramente não sei. Foram muitos.
Certa manhã, o visito. Estava de
partida para o Recife. Dou-lhe conhecimento: “Estou indo para a ‘terrinha’,
você quer alguma coisa Bandeira?” Ele agradece e diz que não. Despedimo-nos.
Fecha a porta, de imediato, abre-a e me chama. Fixando-me bem nos olhos
pergunta: “Você conhece o Arraes?” Arraes era o prefeito do Recife. Bandeira me informa que o Arraes havia vetado a Lei
aprovada pela Câmara Municipal, que autorizava a colocação do seu busto, numa
praça no centro da cidade. Senti que Bandeira estava magoado. “Fale com ele”,
repetiu. Não falei nada com Arraes, nem sei se teria acesso. No avião a frase
do poeta tomava conta do meu subconsciente: “Fale com ele”.
Chego ao Recife. Preciso de
alguém que tenha acesso ao prefeito. À tardinha, casualmente, na Praça Joaquim
Nabuco, na capital pernambucana, encontro o líder comunista David Capistrano,
dirigente máximo do PC em Pernambuco, homem de prestigio e alta
respeitabilidade.
Prefeito do Recife só se elegia
com apoio comunista. Arraes teve apoio, se elegeu com 70% dos votos dos
recifenses.
Eu tinha uma profunda admiração
por David, sua biografia me empolgava. Sua coragem e seu amor à Pátria serviam
de exemplo.
Falei com David: “Preciso de sua
ajuda. Bandeira não é um inimigo do partido, Bandeira é um poeta. É
pernambucano, é meu amigo!” David pediu-me para aguardá-lo, naquele mesmo local
(uma casa de eletrodomésticos de um simpatizante do partido), no outro dia, na
mesma hora”.
Pontualmente, David chega e me
diz rindo, que Arraes vetou a Lei,
alegando que o poeta Manoel Bandeira, há mais de 30 anos, não vinha ao Recife.
Getúlio Vargas era o presidente
da República, havia assinado o Acordo Militar Brasil-Estados Unidos, por cujo
acordo, teríamos que acompanhá-los nas suas guerras imperialistas, como a da
Coreia, por exemplo. Eles estavam exigindo a nossa presença. E os comunistas
estavam nas Praças Públicas liderando a campanha contra o envio dos nossos
soldados, a fim de não servir de ‘bucha para canhão’. Elisa Branco, uma líder
comunista, ganhadora do ‘Prêmio Stalin da Paz’, foi presa e condenada a quatro
anos e seis meses de prisão, tendo cumprido mais de três, visitei-a no Presídio
do Hipódromo. Seu crime: abriu uma faixa no Viaduto do Chá, no desfile Militar
de Sete de Setembro, com os dizeres “Os soldados, nossos filhos, não irão para
Coreia!” Grande e saudosa Elisa Branco, as homenagens desse seu companheiro de
lutas. Com esse gesto heroico e corajoso, Elisa salvou muitas vidas dos nossos
jovens. É bom lembrar que essa guerra teve início em 25 de junho de 1950 e
terminou em 27 de julho de 1953. Morreram três milhões de coreanos e 40 mil
americanos.
Havia chegado ao Brasil,
encontrava-se ancorado na Baia da Guanabara um porta-aviões americano. Manuel
Bandeira fez um poema, saudando a moçada americana. Poeticamente afirmava:
“Entre, vamos andando, a casa é sua.” Caímos de pau em cima do poeta.
Há pouco, no Recife, faço um
passeio cultural pela cidade, em frente ao Rio Capibaribe, contemplando-o,
encontro com Manuel Bandeira. Cabelos bem penteados, sentado, pernas cruzadas, seu
olhar está fixo, olhos pequenos que diminuíam ainda mais diante do Capibaribe,
Capibaribe que ele cantou tantas vezes e de tantas saudades. A escultura, eu
não sei se é de Abelardo da Hora, falecido há pouco, meu companheiro sempre
presente nas lutas em defesa das boas causas. O genial escultor pernambucano,
cuja arte e prestígio ultrapassaram as nossas fronteiras.
Ontem eu sonhei com o poeta
Manuel Bandeira. Estava vestido de branco, e sorria muito para mim. Amanheci
alegre e com muita saudade dele.
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