Por BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS - Via Outras Palavras -
Criá-lo foi ato desumano de colonialismo. Extinto, pode dar lugar a
Estado plurinacional e secular, onde judeus e palestinos convivam
pacífica e dignamente.
![]() |
8/3/2013: Jovem manifestante palestino foge dos guardas de fronteira israelense, durante confronto contra a expropriação de terras palestinas em Kafr Qaddum |
Podem simples cidadãos de todo o mundo organizar-se para propor em
todas as instâncias de jurisdição universal possíveis uma ação popular
contra o Estado de Israel no sentido de ser declarada a sua extinção,
enquanto Estado judaico, não apenas por ao longo da sua existência ter
cometido reiteradamente crimes contra a humanidade, mas sobretudo por a
sua própria constituição, enquanto Estado judaico, constituir um crime
contra a humanidade? Podem. E como este tipo de crime não prescreve,
estão a tempo de o fazer. Eis os argumentos e as soluções para restituir
aos judeus e palestinianos e ao mundo em geral a dignidade que lhes foi
roubada por um dos atos mais violentos do colonialismo europeu no
século XX, secundado pelo imperialismo norte-americano e pela má
consciência europeia desde o fim da segunda guerra mundial.
O termo sionismo designa o movimento que apoia o “regresso” dos
judeus à sua suposta pátria de que também supostamente foram expulsos no
século V AC. Há, no entanto, que distinguir entre sionismo judaico e
sionismo cristão. O sionismo judaico tem origem no antissemitismo que
desgraçadamente sempre perseguiu os judeus na Europa e que viria a
culminar no holocausto nazi. O sonho de Theodor Herzl, judeu austríaco e
grande poponente do sionismo, era a criação, não de um Estado judaico,
mas de uma pátria segura para os judeus. O sionismo cristão, por sua
vez, é antissemita, e a ideia de um Estado judaico deveu-se a políticos
britânicos, sionistas e anglicanos devotos, como Lord Shaftesbury, que,
acima de tudo, [1]desejavam ver o seu país livre dos
judeus-enquanto-judeus. Eram tolerados os judeus cristianizados (como
Benjamin Disraeli, que chegou a ser Primeiro Ministro), mas só esses.
Esta tolerância estava de acordo com a profecia cristã de que é destino
dos judeus converterem-se ao cristianismo. O mesmo sentimento se
encontra hoje entre os evangélicos norte-americanos, que apoiam Israel
como Estado judaico, bem como a sua desapiedada expansão colonialista
contra os palestinianos, por acreditarem que a redenção total ocorrerá
no fim dos tempos, com a conversão dos judeus na Parusia (o regresso de
Jesus Cristo).
Terá sido Lord Shaftesbury quem, ainda no século XIX, formulou o
pensamento “uma terra sem povo para um povo sem terra” que ajudaria mais
tarde a justificar a criação do Estado de Israel na Palestina em 1948. E
alguns anos mais tarde, foi outro sionista não judeu (Arthur James
Balfour) quem propôs a criação de “uma pátria para os judeus” na
Palestina, sem consultar os povos árabes que habitavam esse território
há mais de mil anos.
“Os Grandes Poderes” (Áustria, Rússia, França, Inglaterra), lê-se
no Memorandum Balfour de 11 de Agosto de 1919, “estão comprometidos com
o Sionismo. E o Sionismo, correto ou incorreto, bom ou mau, tem as suas
raízes em antiquíssimas tradições, em necessidades atuais e em
esperanças futuras, que são bem mais importantes do que os desejos de
700.000 árabes que neste momento habitam aquele antigo território”.
Urgia, pois, transformar esses árabes em um não-povo. Em 1948, com o
beneplácito dos poderes ocidentais, especialmente da Inglaterra, foi
criado o Estado de Israel numa Palestina povoada de árabes e 10% de
judeus imigrantes.
Argumentava-se então que havia de se encontrar um espaço para o povo
judeu, que ninguém queria receber depois do genocídio alemão. Muito
antes dessa catástrofe, os sionistas judeus tinham já pensado em vários
locais para[2] o seu futuro Estado. No final do século XIX, a região do
Uganda, no que é hoje o Quénia, então colónia inglesa, foi ponderada
como um possível local para o futuro Estado de Israel. Um espaço na
Argentina chegou também a ser considerado. Mais tarde, auscultado sobre
um local no norte de África (no que é hoje a Líbia), o rei da Itália,
Victor Emmanuel, terá recusado, respondendo: “Ma è ancora casa di
altri”. Mas nenhum europeu, por mais preocupado com a situação dos
judeus, jamais pensou num lugar dentro da própria Europa. Havia que
inventar-se “uma terra sem povo para um povo sem terra”. Mesmo que fosse
necessário obliterar um povo. E assim se vem paulatinamente eliminando
um povo da face da terra desde há sessenta e seis anos. A Cisjordânia
palestiniana vem sendo desmantelada pelos colonatos ilegais e a Faixa de
Gaza transformada em prisão a céu aberto. A extrema-direita israelita é
apenas mais estridente do que o governo ao reclamar que os “árabes
fedorentos de Gaza sejam lançados ao mar”. O que é espantoso, comenta o
historiador judeu israelita, Ilan Pappé em The Ethnic Cleansing of
Palestine (2006), é ver como os judeus, em 1948, há tão pouco tempo
expulsos das suas casas, espoliados dos seus pertences e por fim
exterminados, procederam sem pestanejar à destruição de aldeias
palestinianas, com expulsão dos seus habitantes e massacre daqueles que
se recusaram a sair. O controverso comentário de José Saramago de há
alguns anos de que o espírito de Auschwitz se reproduz em Israel faz
hoje mais do que nunca.
Assim foi sacrificada a Palestina, invocadas razões bíblicas e
históricas, que a Bíblia não sanciona e a história viria a
desmistificar. Muitos judeus, como os que constituem a Jewish Voice for
Peace, não são sionistas e consideram que o Estado de Israel, nas
condições em que foi criado (um território, um povo, uma língua, uma
religião) é uma arcaica aberração [3] colonialista fundada no mito de
uma “terra de Israel” e de um “povo judaico”, que a Bíblia nem sequer
confirma. Como bem demonstra, entre outros, o historiador judeu
israelita, Shlomo Sand, a Palestina como a “terra de Israel” é uma
invenção recente (The Invention of the Land of Israel, 2012). Aliás,
ainda segundo o mesmo autor, também o conceito de “povo judaico” é uma
invenção recente (The Invention of the Jewish People, 2009).
A criação do Estado judaico de Israel configura um crime continuado
cujos abismos mais desumanos se revelam nos dias de hoje. Declarada a
sua extinção, os cidadãos do mundo propõem a criação na Palestina de um
Estado secular, plurinacional e intercultural, onde judeus e
palestinianos possam viver pacifica e dignamente. A dignidade do mundo
está hoje hipotecada à dignidade da convivência entre palestinianos e
judeus.