IGOR MENDES -
É
bastante conhecido de todos o racismo absolutamente estratificado da sociedade
norte-americana, agora novamente escancarado através do ocorrido em Ferguson. A
terra da “liberdade” deu ao mundo a horrível Klu-Klux-Klahn, os linchamentos de
pessoas inermes, as atrocidades no Vietnã. O racismo, componente fundamental
primeiro na ideologia colonialista e, depois, ligeiramente modificado, na
ideologia imperialista, é uma espada que as classes dominantes não poderão
jamais deixar de brandir na luta de classes.
O fato de um presidente ser negro não altera nem pode alterar em nada a
questão. Como exercer o principal cargo governamental uma mulher em nada altera
a opressão sexual sobre as mulheres. A classe dominante, combatendo por uma
minoria privilegiada, não sobreviveria um único dia se não fosse capaz de
dividir e embrutecer com preconceitos a maioria absoluta da sociedade –os
trabalhadores.
Recente artigo da BBC-Brasil trazia alguns dados significativos sobre
os Estados Unidos. Lá, as famílias negras têm rendimento médio seis vezes
inferior às famílias brancas, e foram mais golpeadas com a crise
econômico-financeira; os homens negros receberam sentenças 19,5 vezes maiores
que os brancos em situações semelhantes entre 2007 e 2011; estudantes negros
recebem três vezes mais expulsões e suspensões escolares; apenas 43,2% das
famílias negras possuem casa própria, enquanto entre as famílias brancas esse
índice alcança 73,4%.
Comparando
com o Brasil
Naturalmente
o Brasil possui uma formação econômico-social própria, distinta da que possui
os Estados Unidos, o que implica determinadas particularidades na forma como se
manifestam as opressões sociais e étnicas em nossa sociedade. Mas uma coisa é
evidente: uma das heranças mais visíveis do nosso passado colonial e escravista
é o fato de que a maioria dos negros são pobres. E, sendo sinônimo de pobres,
são mais vulneráveis à sanha repressiva do Estado brasileiro.
Segundo o resultado da última pesquisa de emprego divulgada pelo IBGE,
em janeiro último, o salário médio dos negros em 2013 equivaleu a 57,4% do
salário médio dos brancos; o percentual de negros assassinados no Brasil é 132%
maior que o de brancos, segundo uma pesquisa divulgada pelo Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea, intitulada Vidas Perdidas e Racismo no
Brasil; a população carcerária no Brasil aumentou 403,5% nos últimos anos (a
população aumentou 36%), sendo hoje a quarta maior do mundo, e essa população é
quase totalmente constituída de jovens pobres e, dentre estes, em grande parte,
negros. Numa abordagem policial, a popular “dura”, os negros têm algumas vezes
mais chances de ser abordados que os brancos.
Uma
perspectiva de classe
Isso mostra que o mito da “democracia racial” é apenas isso: um mito.
Entretanto, combater o mito somente, e não as causas que geram e alimentam o
mito, é também fazer o jogo dos que querem nos dividir, é também uma
mistificação.
Vejamos.
Se negros e pardos são grande parte da população carcerária, toda a
população carcerária é constituída por pobres; ou, inversamente, os negros
encarcerados são todos negros pobres.
Se negros e pardos lideram a taxa de homicídios, devemos dizer que
esses homicídios ocorrem em grande parte em bairros e favelas, ou seja, nos
lugares da pobreza; como no caso dos presídios, os negros assassinados pela
polícia são todos negros pobres.
Se
negros e pardos recebem um salário médio inferior aos brancos, isso se dá num
contexto em que o salário médio dos trabalhadores é um salário de fome.
A questão é: não pode haver “democracia racial” numa sociedade que não
é de fato democrática, numa “democracia” onde 1% dos grandes proprietários
fundiários detém 43% das terras agricultáveis e os 10% mais ricos concentram
50% de toda a renda nacional. Seria impossível contemplar a parte, se está
excluído o todo.
Medidas “sócio-afirmativas” são capazes de resolver isso? Claro que
não. Enquanto o poder continuar nas mãos dos senhores de escravos modernos,
enquanto se perpetuar a escravidão assalariada, que no Brasil se expressa
através do desemprego e do arrocho salarial continuado (porque um dos
“atrativos” da economia brasileira é exatamente o fato de possuir uma força de
trabalho abundante e barata, bem como recursos naturais), essa desigualdade
seguirá se reproduzindo, como num ciclo vicioso.
O
importante é não perdermos a capacidade de nos indignar, e nos rebelar. Olhando
Ferguson, penso: no Brasil é tão rotineira a prática do assassinato pela
polícia, a própria morte se tornou tão banal, que talvez um caso como aquele
não seja mais capaz de despertar, aqui, uma revolta tão generalizada. Nada
seria mais terrível do que isso. Porque não será das leis ou das urnas que virá
a alteração desse quadro. Nos Estados Unidos se fez uma guerra contra a
escravidão, entretanto os negros continuaram escravos. A verdadeira liberdade
só poderá se realizar no dia em que o povo tomar em suas próprias mãos tudo
aquilo que lhe diz respeito, no dia em que não mais existam senhores e
escravos.