22.8.14

A FERGUSON NOSSA DE CADA DIA

IGOR MENDES -

É bastante conhecido de todos o racismo absolutamente estratificado da sociedade norte-americana, agora novamente escancarado através do ocorrido em Ferguson. A terra da “liberdade” deu ao mundo a horrível Klu-Klux-Klahn, os linchamentos de pessoas inermes, as atrocidades no Vietnã. O racismo, componente fundamental primeiro na ideologia colonialista e, depois, ligeiramente modificado, na ideologia imperialista, é uma espada que as classes dominantes não poderão jamais deixar de brandir na luta de classes.

O fato de um presidente ser negro não altera nem pode alterar em nada a questão. Como exercer o principal cargo governamental uma mulher em nada altera a opressão sexual sobre as mulheres. A classe dominante, combatendo por uma minoria privilegiada, não sobreviveria um único dia se não fosse capaz de dividir e embrutecer com preconceitos a maioria absoluta da sociedade –os trabalhadores.

Recente artigo da BBC-Brasil trazia alguns dados significativos sobre os Estados Unidos. Lá, as famílias negras têm rendimento médio seis vezes inferior às famílias brancas, e foram mais golpeadas com a crise econômico-financeira; os homens negros receberam sentenças 19,5 vezes maiores que os brancos em situações semelhantes entre 2007 e 2011; estudantes negros recebem três vezes mais expulsões e suspensões escolares; apenas 43,2% das famílias negras possuem casa própria, enquanto entre as famílias brancas esse índice alcança 73,4%.

Comparando com o Brasil 

Naturalmente o Brasil possui uma formação econômico-social própria, distinta da que possui os Estados Unidos, o que implica determinadas particularidades na forma como se manifestam as opressões sociais e étnicas em nossa sociedade. Mas uma coisa é evidente: uma das heranças mais visíveis do nosso passado colonial e escravista é o fato de que a maioria dos negros são pobres. E, sendo sinônimo de pobres, são mais vulneráveis à sanha repressiva do Estado brasileiro.

Segundo o resultado da última pesquisa de emprego divulgada pelo IBGE, em janeiro último, o salário médio dos negros em 2013 equivaleu a 57,4% do salário médio dos brancos; o percentual de negros assassinados no Brasil é 132% maior que o de brancos, segundo uma pesquisa divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea, intitulada Vidas Perdidas e Racismo no Brasil; a população carcerária no Brasil aumentou 403,5% nos últimos anos (a população aumentou 36%), sendo hoje a quarta maior do mundo, e essa população é quase totalmente constituída de jovens pobres e, dentre estes, em grande parte, negros. Numa abordagem policial, a popular “dura”, os negros têm algumas vezes mais chances de ser abordados que os brancos. 

Uma perspectiva de classe 

Isso mostra que o mito da “democracia racial” é apenas isso: um mito. Entretanto, combater o mito somente, e não as causas que geram e alimentam o mito, é também fazer o jogo dos que querem nos dividir, é também uma mistificação.

Vejamos.

Se negros e pardos são grande parte da população carcerária, toda a população carcerária é constituída por pobres; ou, inversamente, os negros encarcerados são todos negros pobres.

Se negros e pardos lideram a taxa de homicídios, devemos dizer que esses homicídios ocorrem em grande parte em bairros e favelas, ou seja, nos lugares da pobreza; como no caso dos presídios, os negros assassinados pela polícia são todos negros pobres.

Se negros e pardos recebem um salário médio inferior aos brancos, isso se dá num contexto em que o salário médio dos trabalhadores é um salário de fome.

A questão é: não pode haver “democracia racial” numa sociedade que não é de fato democrática, numa “democracia” onde 1% dos grandes proprietários fundiários detém 43% das terras agricultáveis e os 10% mais ricos concentram 50% de toda a renda nacional. Seria impossível contemplar a parte, se está excluído o todo.

Medidas “sócio-afirmativas” são capazes de resolver isso? Claro que não. Enquanto o poder continuar nas mãos dos senhores de escravos modernos, enquanto se perpetuar a escravidão assalariada, que no Brasil se expressa através do desemprego e do arrocho salarial continuado (porque um dos “atrativos” da economia brasileira é exatamente o fato de possuir uma força de trabalho abundante e barata, bem como recursos naturais), essa desigualdade seguirá se reproduzindo, como num ciclo vicioso. 

O importante é não perdermos a capacidade de nos indignar, e nos rebelar. Olhando Ferguson, penso: no Brasil é tão rotineira a prática do assassinato pela polícia, a própria morte se tornou tão banal, que talvez um caso como aquele não seja mais capaz de despertar, aqui, uma revolta tão generalizada. Nada seria mais terrível do que isso. Porque não será das leis ou das urnas que virá a alteração desse quadro. Nos Estados Unidos se fez uma guerra contra a escravidão, entretanto os negros continuaram escravos. A verdadeira liberdade só poderá se realizar no dia em que o povo tomar em suas próprias mãos tudo aquilo que lhe diz respeito, no dia em que não mais existam senhores e escravos.