Por Frei Betto - Via Brasil de Fato -
Na concretude da fé cristã, anunciarei aos quatro ventos a certeza de
ressurreição da carne e de todo o Universo redimido pelo corpo místico
de Cristo. Então, quando a morte transvivenciar-me, o que é terno
tornar-se-á eterno.
Na festa do Corpo de Cristo, deixarei o meu flutuar em alturas
abissais. Acariciarei uma por uma de minhas rugas, desvelarei histórias
em meus cabelos brancos, apreenderei, na ponta dos dedos, meu perfil
interior.
Não recorrerei ao bisturi das falsas impressões. Nem ao
espectro da magreza anoréxica. O tempo prosseguirá massageando meus
músculos até torná-los flácidos como as delicadezas do espírito.
Suspenderei
todas as flexões, exceto as que aprendo na academia dos místicos.
Beberei do próprio poço e abrirei o coração para o anjo da
faxina atirar, pela janela da compaixão, iras, invejas e amarguras.
Pisarei
sem sapatos o calor da terra viva. Bailarino ambiental, dançarei
abraçado à Gaia ao som ardente de canções primevas. Dela receberei o
pão; a ela darei a paz.
Acesas as estrelas,
contemplarei na penumbra do mistério esse corpo glorioso que nos funde,
eu e Gaia, em um único sacramento divino. Seu trigo brotará como
alimento para todas as bocas, e suas uvas farão correr rios inebriantes
de saciedade.
Na mesa cósmica, ofertarei as primícias de meus
sonhos. De mãos vazias, acolherei o corpo do Senhor no cálice de minhas
carências.
Dobrarei os joelhos ao mistério da vida e contemplarei o
rosto divino na face daqueles que nunca souberam que cosmo e cosmético
são gregas palavras, e deitam raízes na mesma beleza.
Despirei os
meus olhos de todos os preconceitos e rogarei pela fé acima de todos os
preceitos. Como Ezequiel, contemplarei o campo dos mortos até ver a
poeira consolidar-se em ossos, os ossos se juntarem em esqueletos, os
esqueletos se recobrirem de carne, e a carne inflar-se de vida no
Espírito de Deus.
Proclamarei o silêncio como ato de profunda
subversão. Desconectado do mundo, banirei da alma todos os ruídos que me
inquietam e, vazio de mim mesmo, serei plenificado por Aquele que me
envolve por dentro e por fora, por cima e por baixo.
Suspenderei
da mente a profusão de imagens e represarei no olvido o turbilhão de
ideias. Privarei de sentido as palavras. Absorvido pelo silêncio,
apurarei os ouvidos para escutar a brisa de Elias e, os olhos, para
admirar o que tanto extasiou Simeão.
Não mais farei de meu corpo
mero adereço estranho ao espírito. Serei uma só unidade, onda e
partícula, verso e reverso, anima e animus.
Recolherei pelas esquinas
todos os corpos indesejados para lavá-los no sangue de Cristo, antes que
se soltem de seus casulos para alçar o voo salvífico das borboletas.
Curarei
da cegueira os que se miram no olhar alheio e besuntarei de cremes
bíblicos o rosto de todos que se julgam feios, até que neles transpareça
o esplendor da semelhança divina.
Arrancarei do chão de ferro os pés
congelados da dessolidariedade e farei vir vento forte aos que temem o
peso das próprias asas. Ao alçarem o topo do mundo, verão que todos
somos um só corpo e um só espírito.
Farei do meu corpo hóstia viva; do
sangue, vinho de alegria. Ébrio de efusões e graças, enlaçarei num
amplexo cósmico todos os corpos e, no salão dourado da Via Láctea,
valsaremos até que a música sideral tenha esgotado a sinfonia
escatológica.
Na concretude da fé cristã, anunciarei aos quatro
ventos a certeza de ressurreição da carne e de todo o Universo redimido
pelo corpo místico de Cristo. Então, quando a morte transvivenciar-me, o
que é terno tornar-se-á eterno.