Via Revista Congresso em Foco -
As garotas do interior de Minas que em 1958
driblaram a lei e o conservadorismo para formar o primeiro time de
futebol feminino do país.
O sucesso do time ao entrar no estádio de Uberlândia completamente lotado. |
Nem o argentino Messi, nem o português Cristiano Ronaldo. Nenhum
atleta recebeu mais vezes o título de melhor jogador do mundo, dado
desde 1991 pela Federação Internacional de Futebol Associado (Fifa), do
que a atacante brasileira Marta. Desde que a premiação feminina foi
instituída, em 2001, a alagoana foi a única a levar cinco troféus para
casa (de 2006 a 2010). Mas meio século antes de Marta conquistar o
planeta com seu talento, um time de 25 pioneiras deu um drible na
obscura lei brasileira que proibia as mulheres de praticarem futebol e
outras modalidades de contato físico e marcou um golaço contra o
preconceito.
As garotas de Araguari (MG), município do Triângulo Mineiro
localizado a 670 km de Belo Horizonte, foram responsáveis pela primeira
grande conquista do futebol feminino no Brasil. Só não foram mais
adiante porque não resistiram ao contra-ataque da discriminação.
Acabaram expulsas de campo por pressão do Estado e da Igreja.
O jogo rasteiro, no entanto, não foi suficiente para apagar a
história que elas construíram, quebrando tabus e abrindo novas
perspectivas para as mulheres no esporte. As pernas que corriam atrás da
bola já não têm hoje a força e a agilidade daqueles tempos. Mas as
senhoras, na faixa dos 60 e 70 anos, ainda sonham com o passado. E
pensar que tudo começou com uma brincadeira para ajudar um dos colégios
mais tradicionais da cidade a tirar suas contas do vermelho. A
iniciativa fez tanto sucesso que levou as garotas de Araguari a se
apresentarem em dezenas de cidades mineiras, em Goiás e na Bahia. Deram o
pontapé para o futebol feminino no país.
Por uma causa
Era 1958. A ideia inicial da diretora era que o time masculino do
Araguari Atlético Clube fizesse uma partida beneficente em favor do
grupo escolar Visconde de Ouro Preto. Diretor do clube, Ney Montes deu
uma sugestão original: promover uma partida apenas entre garotas.
Divididas em duas equipes, o Araguari e o Fluminense, as jovens entravam
em campo com a missão de salvar a escola municipal Visconde de Ouro
Preto. No ano em que o Brasil conquistava sua primeira Copa do Mundo,
garotas de classe média da pacata cidade mineira guardaram os sapatos e
os vestidos bem comportados. Partiram para as camisetas, chuteiras e
calções.
Não só conseguiram salvar o caixa escolar, mas também movimentar as
rodas de conversa da região. O estádio lotava durante as partidas. A
notícia voou até a vizinha Uberlândia, que logo convidou o time para um
jogo. Principal revista do país naquela época, O Cruzeiro foi
conhecer as primeiras mulheres do futebol brasileiro, publicou
reportagem e deu projeção nacional às “mocinhas” de Araguari. “’Glamour
usa chuteiras’”, estampou a revista. Viraram celebridades. Chegaram a
desfilar em carro de bombeiros em Salvador e Belo Horizonte. Em Minas, o
time levou mais gente ao estádio do que o Botafogo de Garrincha, no
mesmo em que o “anjo das pernas tortas” e um garoto de 17 anos chamado
Pelé assombraram o mundo. Foram até convidadas a jogar no México, país
que naquela época já tinha time feminino de futebol.
Cartão vermelho
A jornalista e pesquisadora Tereza Cristina Montes Cunha, filha do
organizador do time Ney Montes, foi quem resgatou a história do time de
Araguari. Ela conta que a alegria das partidas perdeu espaço para a
tristeza quando as garotas foram proibidas de jogar. O sucesso fez os
incomodados tirarem do baú um decreto-lei da década de 1940, que proibia
mulheres de praticarem modalidades esportivas “incompatíveis” com o seu
físico – o futebol era citado como uma delas.
O time feminino não durou dez meses. Ainda recebeu pressão da Igreja
Católica, também contrária ao envolvimento de mulheres com a prática
desportiva. O decreto instituído na ditadura de Getúlio Vargas só caiu
na reta final da ditadura seguinte, em 1979.
No Brasil, a primeira partida de futebol entre moças uniformizadas de
que se tem notícia ocorreu em 1913, entre os times de Tremembé e
Cantareira (atual bairro de Santana), na Zona Norte paulistana. Mas
Tereza explica que o diferencial do time de Ara- guari é que tinha o
caráter de apresentação, com toda a estrutura de uma partida oficial de
futebol. Estava ligado à Federação Mineira de Futebol. Por isso,
considera-se que o Araguari é pioneiro no futebol feminino. O clube só
não foi criado formalmente por causa do decreto-lei de Vargas. “Elas
tinham um grande sonho, de serem jogadoras oficiais. Infelizmente foram
proibidas. A maioria seguiu jogando outros esportes, como o vôlei e o
handebol”, afirma a pesquisadora.
Cinco décadas depois, nem o sucesso individual de Marta colocou as
mulheres em igualdade de condições com os homens no futebol. As
principais atletas, como a própria atacante da sele- ção brasileira,
precisam jogar em clubes do exterior para ganhar dinheiro. Aos 27 anos,
Marta joga desde os 18 na Suécia, onde defende atualmente o Tyresö FF.
No Brasil, as mulheres não têm sequer um campeonato nacional estável. A
realidade nacional é de baixos salários, poucos clu- bes e falta de uma
liga profissional.