Via Blogueiras Feministas -
Se viva estivesse, Simone de Beauvoir, faria 104 anos no último dia 9, quinta-feira. É dela uma das principais frases do movimento feminista: “Não se nasce mulher, torna-se mulher.” A mulher não tem um destino biológico, ela é formada dentro de uma cultura que define qual o seu papel no seio da sociedade. As mulheres, durante muito tempo, ficaram aprisionadas ao papel de mãe e esposa, sendo a outra opção o convento. Porém, a própria Simone rompe com esse destino feminino e faz de sua vida algo completamente diferente do esperado para uma mulher.
Nascida em uma família da alta burguesia francesa, Simone era a mais velha de duas filhas. Durante sua infância a família faliu e, por considerar que as filhas não conseguiriam bons casamentos, pois não havia dinheiro para um bom dote, George de Beauvoir se convenceu de que somente o sucesso acadêmico poderia tirar as filhas da pobreza.
De fato, Simone de Beauvoir teve mais poder de escolha que muitas mulheres de sua época. A educação e o desenvolvimento acadêmico são até hoje maneiras de forjar mulheres mais independentes, que rompem com os padrões de sua época. Ela faz uma crítica aos valores burgueses nos quais foi criada no livro “Memórias de uma moça bem comportada”.
Simone de Beauvoir tinha 41 anos quando publicou “O Segundo Sexo”, em 1949. Já naquela época a obra levantou inúmeras polêmicas. Uma das principais acusações é que Simone ridicularizava os homens. Isso é uma acusação que muitos usam contra o feminismo. Porém, as pessoas parecem não querer compreender o que realmente se passa na vida das mulheres e como todo o poder está concentrado nas mãos dos homens. “O Segundo Sexo” não é uma fonte historiografica para conhecer a história da mulher desde a antiguidade. É uma obra de inspiração, fundamental para descortinar a maneira pela qual as mulheres são criadas justamente para serem menos que os homens. Você pode baixar “O Segundo Sexo” em .pdf no blog Livros Feministas.
Lendo algumas das críticas que foram feitas a “O Segundo Sexo”, muitas parecem absurdas, mas ainda lemos opiniões conservadoras e moralizantes em diversos cadernos de opinião da mídia brasileira, especialmente quando se trata da sexualidade feminina. Entre seus críticos estava François Mauriac, escritor francês, que em uma de suas enquetes no Figaro Littéraire perguntou: “Estaria a iniciação sexual da mulher no seu devido lugar no sumário de uma revista literária e filosófica séria?” A questão dividiu os intelectuais. Para muitos “O Segundo Sexo” é um “manual de egoísmo erótico,” recheado de “ousadias pornográficas”; não passa de “uma visão erótica do universo”, um manifesto de “egoísmo sexual.” Jean Kanapa insiste: “Mas sim, pornografia. Não a boa e saudável sacanagem, nem o erotismo picante e ligeiro, mas a baixa descrição licenciosa, a obscenidade que revolta o coração.” A polêmica mistura tudo. A contracepção e o aborto são ligados nas mesmas frases às neuroses, ao vício, à perversidade, e à homossexualidade.
Segundo uma carta da enquete, “a literatura de hoje é uma literatura de esnobes, de neuróticos e de impotentes.” Claude Delmas deplora “a publicação por Simone de Beauvoir dessa enjoativa apologia da inversão sexual e do aborto.” Pierre de Boisdeffre em Liberté de l’ésprit assinala “o sucesso de O Segundo Sexo junto aos invertidos e excitados de todo tipo.” Leia mais em O Auê do Segundo Sexo de Sylvie Chaperon, publicado no Cadernos Pagu 12, de 1999.
Nenhuma obra, literária ou acadêmica, de Simone de Beauvoir foi recebida com indiferença. Sua principal contribuição é sempre propor a discussão democrática e as rupturas das estruturas psíquicas, sociais e políticas. Por ser escrito por uma mulher e para mulheres, “O Segundo Sexo” levanta diversas questões, até mesmo no meio literário. Há muito tempo a literatura classificada como feminina é sinônimo de textos sem grande aprofundamento teórico. Além disso, não era comum tratar de assuntos como sexualidade, maternidade e identidades sexuais, mesmo na França do pós-guerra.
Em 2009, Fernanda Montenegro estreou a peça “Viver Sem Tempos Mortos”, baseada nas cartas autobiográficas de Simone de Beauvoir. A temporada de 2011 foi encerrada em dezembro, mas há a possibilidade da peça reestrear novamente no futuro. Em entrevista a Revista Bravo, Fernanda Montenegro respondeu algumas perguntas sobre sua relação com a obra de Beauvoir:
Qual o primeiro livro dela que você leu?
Foi O Segundo Sexo, que saiu em 1949 e se transformou num clássico da literatura feminista, sobretudo por apregoar que as mulheres não nascem mulheres, mas se tornam mulheres. Ou melhor: que as características associadas tradicionalmente à condição feminina derivam menos de imposições da natureza e mais de mitos disseminados pela cultura. O livro, portanto, colocava em xeque a maneira como os homens olhavam as mulheres e como as próprias mulheres se enxergavam. Tais ideias, avassaladoras, incendiaram os jovens de minha geração e nortearam as nossas discussões cotidianas. Falávamos daquilo em todo canto, nos identificávamos com aquelas análises. Simone, no fundo, organizou pensamentos e sensações que já circulavam entre nós. Contribuiu, assim, para mudar concretamente as nossas trajetórias.
De que modo alterou a sua?
Sou descendente de italianos e portugueses, um pessoal muito simples, muito batalhador, e me criei nos subúrbios cariocas. Desde cedo, conheci mulheres que trabalhavam. E reparei que, entre os operários, na briga pela sobrevivência, os melindres do feminino e as prepotências do masculino se diluíam. Era necessário tocar o barco, garantir o sustento da família sem dar bola para certos pudores burgueses. Nesse sentido, a pregação feminista de que as mulheres deviam ir à luta profissionalmente não me impressionou tanto. Um outro conceito me seduziu bem mais: o da liberdade. A noção de que tínhamos direito às nossas próprias vidas, de que poderíamos escolher o nosso rumo e de que a nossa sexualidade nos pertencia. Eis o ponto em que o livro de Simone me fisgou profundamente. Lembro-me de quando vi pela primeira vez a cena da bomba atômica explodindo. Ou de quando me mostraram as imagens dos campos de concentração nazistas. O impacto negativo que aquilo me causou foi parecido com o impacto positivo que O Segundo Sexo exerceu sobre mim. Garota, já suspeitava que não herdaria o legado de minha mãe e de minhas avós, que não caminharia à sombra masculina. O livro de Simone me trouxe os argumentos para levar a suspeita adiante. Continue lendo em A vida é um demorado adeus.
Justamente por ter uma lógica própria de se colocar no mundo, Simone decidiu escrever “O Segundo Sexo” ao perceber que nunca havia se perguntado: o que é ser mulher? Essa continua sendo uma pergunta atual, que deve ser feita por todas nós em algum momento da vida.