Por GUILHERME BOULOS - Via Outras Palavras -
Judiciário e polícia postam-se para garantir o direito à especulação,
quando perturbado por seres humanos buscando (que ousadia!) o direito
de morar em alguma parte.
Em defesa do proprietário de imóvel abandonado, “Justiça” desaloja famílias no antigo Hotel Cineasta, em 2011. Só no centro de SP, já há mais vinte “reintegrações de posse” autorizadas |
A esquina da Ipiranga com a avenida São João,
imortalizada em versos, testemunhou fatos bem pouco poéticos há menos de
duas semanas.
Bebês sufocados com bombas de gás, pessoas desmaiando e
outras sendo forçadas por policiais a deitar no chão molhado.
Cadeirantes sem suas cadeiras de roda. Filhos perdidos das mães. Cenário
de horror.
Ali, no cruzamento mais famoso de São Paulo, ficava até
poucos dias a ocupação de duzentas famílias de sem-teto, no prédio do
antigo hotel Aquarius, fechado e abandonado há mais de dez anos.
Não só este. Estima-se em 400 mil o número de imóveis
desocupados na cidade de São Paulo. No Brasil, segundo o IBGE, são
6.052.000 imóveis nestas condições. Praticamente a mesma proporção do
número de famílias sem moradia. Estão ali servindo à especulação
imobiliária, esperando por alguma operação urbana ou PPP (Parceria
Público-Privada) que lhes agregue valor com investimento público.
O Judiciário e a polícia postam-se para garantir o
direito à especulação, caso este seja perturbado por grupos de sem-teto
buscando – que ousadia! – o direito de morar em alguma parte. Só no
centro de São Paulo há mais de vinte ocupações com ordem de despejo. A
prefeitura também conseguiu, na semana passada, ordem judicial para
despejar a ocupação Chico Mendes, na região do Morumbi. Preparemos os
olhos e o estômago para as cenas dos próximos capítulos.
Tratar problemas sociais como casos de polícia é
sinal inequívoco da barbárie. Assim foi no Carandiru, em Eldorado dos
Carajás ou no Pinheirinho. É a aposta na violência de Estado para
sufocar as contradições da sociedade.
Foi assim na esquina famosa, no dia 16. E foi assim
também, dois dias depois, em uma esquina nem tão famosa do bairro da
Lapa. O PM Henrique Dias de Araújo atirou à queima-roupa em um camelô
que tentava defender seu colega, agredido por outros dois policiais.
Carlos Augusto Braga, o camelô assassinado, já havia
terminado o expediente e estava indo buscar o filho na escola. Segundo a
família, planejava voltar ao Piauí, onde havia sido aprovado num
concurso público. Não verá mais nem o filho, nem o Piauí.
O PM que o matou já respondia por outro assassinato, em
março deste ano, quando atirou num morador de rua, supostamente em
legítima defesa. Legítima defesa foi também a alegação do comando para o
novo assassinato, até ter sido desmentido por um vídeo que flagrou o
crime.
É impressionante como a reação de indignação a esses
vídeos tem prazo tão curto de validade. E como o Judiciário contribui
para a banalização da barbárie. Alguns dias depois do assassinato, o
soldado já foi solto e pouco se falou do assunto.
O rito é padrão mesmo quando as provas estão aos olhos
de, todos. Lembram-se vocês daquele pedreiro que foi assassinado por
quatro PMs em frente de casa no Jardim Rosana, zona sul de São Paulo, em
2012? O vídeo saiu no “Jornal Nacional”, da TV Globo.
Algumas semanas depois, o bar de onde saiu a gravação
foi palco de uma chacina, também cometida por policiais, onde sete
pessoas morreram.
Sabem o que aconteceu? Os policiais da chacina, depois
de reconhecidos e presos, já estão soltos. E os quatro que exterminaram o
pedreiro foram absolvidos pelo Judiciário no mês passado.
Mas e as imagens? Ora, pedreiro, camelô, sem-teto, quem se importa?
O governador Geraldo Alckmin (PSDB) segue o mantra
malufista de que polícia violenta dá voto. E por isso não perde uma
oportunidade de por o Choque em ação, a Rota na rua. Pode funcionar no
curto prazo, numa sociedade dominada pelo medo e pela violência.
Mas frequentemente quem aposta na barbárie vê, cedo ou
tarde, o feitiço voltar-se contra o feiticeiro. Junho de 2013 deu sinais
disso, mas a memória é curta.
O prefeito Fernando Haddad (PT), que poderia ter se
contraposto, preferiu atribuir a violência do despejo da avenida São
João a “oportunistas” e tratar o assassinato do camelô como “fato
isolado”. Com medo das acusações levianas do Ministério Público de que
favorece ocupações e em nome da Operação Delegada, que herdou de Kassab,
perdeu uma excelente oportunidade de, no mínimo, ficar calado.
Assim terminou uma semana de barbárie. Com as
autoridades políticas e o Judiciário convidando a todos que façam mais
vezes. Afinal, com camelô e sem-teto pode.
Na Sampa real e sem poesia, a feia fumaça que sobe apagando as estrelas tem cheiro de pólvora e gás lacrimogêneo.