Via Observatório da Imprensa -
“A internet que queremos só é possível num cenário de respeito aos
direitos humanos, em particular à privacidade e à liberdade de
expressão.” Foi com essas palavras que a presidente Dilma Rousseff abriu
o encontro global NETMundial sobre o futuro da governança da internet,
em São Paulo, no final de abril. Diante de uma plateia de 800
representantes de governos, organizações internacionais, negócios,
sociedade civil e da comunidade de especialistas, Rousseff assinou o
histórico Marco Civil da Internet. Internamente, esse foi um raro
momento de sucesso para a presidente em apuros. Para o mundo, o evento
marcou o decisivo arranque do Brasil como um ator progressivo sobre os
direitos digitais no cenário global. Este é um desenvolvimento
significativo, considerando que há muito tempo o Brasil não se
distanciava dos países que pressionam por um controle governamental mais
forte sobre a internet.
Ao contrário da interpretação defendida pelo Financial Times e The Economist,
esse movimento não é um realinhamento com os EUA. Ao contrário, é uma
grande oportunidade para colocar o Brasil no centro de uma coalizão de
países que trabalham para um “Marco Civil global” – uma internet aberta,
livre e segura, e sem a vigilância em massa.
A questão agora é se o Brasil tem o que é preciso para seguir essa
rota. O “Marco Civil global” não surgirá nas conferências e discursos,
mas por meio de ações concretas e manobras políticas hábeis – tal como
foi o caso do Marco Civil no Brasil. Isso requer uma estratégia clara e
um investimento substancial de recursos políticos a longo prazo.
A expansão da coalizão para uma internet livre, aberta e segura será
uma batalha difícil, dadas as múltiplas tentações e impulsos
autoritários – não apenas por parte dos líderes políticos atuais na
China, Rússia e Irã, mas também na Turquia.
Felizmente, com a Alemanha o Brasil tem um parceiro natural nesta
empreitada. Não é por acaso que a chanceler alemã Angela Merkel foi a
única liderança mundial que teve destaque no discurso de Dilma. Assim
como ficou claro em um workshop Brasil-Alemanha no início de
abril, ambos os países compartilham semelhanças importantes. A maioria
das elites de ambos os países compartilha a convicção de que é
importante reduzir os esforços de vigilância. Ambos os governos declaram
seus esforços para recuperar a “soberania tecnológica”, um termo mal
definido que tem levado a iniciativas como o “sistema de roteamento
Schengen” dentro da Europa Continental ou novos cabos de fibra ótica
submarinos entre o Brasil e a Europa, de modo que o tráfego de internet
pode ignorar os EUA e o Reino Unido.
Web livre e aberta
Durante a cúpula NETMundial, Brasil e Alemanha foram os maiores
defensores dos direitos digitais na conferência. Ao levar essa agenda
adiante, Brasil e Alemanha devem se envolver em uma estratégia em duas
vertentes: dar o exemplo em casa e se envolver em empreendedorismo de
normas a nível mundial. Em neutralidade da rede, a Alemanha deveria
seguir o modelo brasileiro e pressionar para consagrar este princípio no
nível da UE. Em medidas para “soberania tecnológica”, Brasil e Alemanha
só devem comprometer-se a essas políticas quando a evidência sugere um
benefício líquido para uma internet mundial livre, aberta e segura.
Ambos os países devem apresentar melhores controles das atividades de
seus próprios serviços de inteligência, incluindo proteção de direitos
dos não-cidadãos.
Ao lidar com esses temas domesticamente, Brasil e a Alemanha poderão
envolver-se em empreendedorismo de normas a nível global. Aqui eles
podem construir sobre a resolução conjunta da ONU sobre privacidade
digital, que foi adotada em dezembro passado. Ambos os países devem
patrocinar relatórios regulares que expõem práticas por parte dos
governos que vão contra a letra e espírito da presente resolução. Ao
fazê-lo, eles não devem se coibir de confrontar os governos com os quais
colaboram em outros ambientes, seja a aliança ocidental ou Brics e
agrupamentos G-7. Eles também devem promover o desenvolvimento de normas
em questões de segurança cibernética, uma área que ainda assim foi
ignorada na cúpula NETMundial. O Brasil tem sido ainda mais lento na
formulação de sua própria posição.
A expansão da coalizão para uma internet livre, aberta e segura será
uma batalha difícil, dadas as múltiplas tentações e impulsos
autoritários – não apenas por parte dos líderes políticos atuais na
China, Rússia e Irã, mas também na Turquia. Exigirá não apenas a
cooperação dos governos, mas também da sociedade civil, empresas, think tanks,
bem como acadêmicos e técnicos especialistas de ambos os países. O
governo e as fundações devem investir na diplomacia de segunda via para
gerar um suporte forte à parceria. Ao mesmo tempo, investimentos
políticos constantes do aparato de governo de ambos os países (inclusive
parlamentares) e dos principais líderes são essenciais.
Neste momento, não está claro se a chanceler Merkel e a presidente
Dilma Rousseff têm o interesse e a coragem necessárias para prosseguir
esta agenda na ausência de pressão pública ou ganhos nas urnas. O
exemplo da “responsabilidade ao proteger” (RWP) deve servir de exemplo
de como não fazer as coisas. Neste caso, o Brasil propôs uma importante
nova iniciativa na ONU com grande alarde, apenas para abandoná-la logo
em seguida após ter sido criticado pelas potências ocidentais.
Desta vez, precisa ser diferente. Uma maneira de fazer diferente é
contar com um parceiro forte e investir na parceria Brasil-Alemanha
sobre a política global da internet. Quando Angela Merkel vier ao Brasil
em 16 de junho para torcer pela equipe alemã em sua primeira partida na
Copa do Mundo, Dilma deve convidá-la para uma discussão sobre como dar
continuidade à pauta digital Brasil-Alemanha. A chanceler também deve se
reunir com altos representantes da sociedade civil brasileira, da
academia e da comunidade técnica que incansavelmente a pressionaram para
a aprovação do Marco Civil e que agora estão prontos para “globalizar”
esta experiência. As apostas são altas, de fato, na batalha para uma web
livre e aberta. A Alemanha e o Brasil não devem deixar essa
oportunidade passar.
*Texto de Thorsten Benner, diretor do Global Public Policy Institute
(GPPi) em Berlim; e Oliver Stuenkel, PhD, é professor de relações
internacionais da FGV/SP.