Por ALBERTO DINES - Via Observatório da Imprensa -
O Holocausto
eclipsou o banho de sangue perpetrado pelos turcos. Nos últimos 70 anos o
genocídio armênio só foi lembrado por força de uma discussão bizantina
sobre a qualificação de genocídio.
“Quem fala hoje no extermínio dos
armênios?” Consta que Adolf Hitler teria formulado a cínica pergunta em
fins de agosto de 1939, dias antes de ordenar a invasão da Polônia e dar
início ao Holocausto, o maior massacre em escala industrial registrado
na história.
O genocídio dos armênios no Império Otomano ocorreu no segundo ano da
Grande Guerra, 1915, e começou na noite de 24 de abril na chamada
“Sublime Porta” (Constantinopla, hoje Istambul). As tropas inglesas
haviam desembarcado em Galipoli para enfraquecer a pressão dos turcos
sobre os russos ansiosos para liberar o estreito dos Dardanelos.
A comunidade armênia majoritariamente cristã, pró-Rússia, começava a
mobilizar-se, os militares turcos anteciparam-se e naquela noite
prenderam, deportaram ou fuzilaram cerca de 250 intelectuais,
profissionais liberais e lideranças políticas, religiosas e comunitárias
armênias. Começava uma “operação limpeza” perpetrada pelos militares
turcos, que em dois anos assassinaram cerca de um milhão e meio de
armênios. Com a assessoria dos aliados alemães.
Promessa cumprida
O sangrento desenrolar da Primeira Guerra Mundial abafou as notícias
sobre o massacre. Logo as conversações de paz, o fim do Império Otomano e
o redesenho do mapa centro-europeu e médio-oriental colocaram uma pá de
cal no terrível episódio.
Quando Hitler começou a arregimentar as massas com a bandeira da
limpeza étnica e germanização da Europa, um talentoso poeta e dramaturgo
tcheco-austríaco, Franz Werfel, judeu, amigo e companheiro de Franz
Kafka e Max Brod, colaborador do ácido crítico vienense Karl Kraus e já
casado com a linda e dominadora Alma Mahler, resolveu relembrar a
pavorosa história.
A novela Os 40 dias de Musa Dagh tem uma envergadura
tolstoiana e conta a história heroica e trágica dos cinco mil armênios
da pequena localidade (Monte Moisés, em português) que preferiram morrer
lutando a serem passivamente dizimados pelos turcos.
Publicada na Alemanha em 1933, antes de ser proibida e queimada pelos
nazistas causou grande comoção internacional. Exemplares do livro foram
contrabandeados para os guetos montados pelos alemães na Polônia e
usados como cartilhas de resistência.
O sucesso da versão inglesa no ano seguinte (35 mil exemplares
vendidos em apenas duas semanas) levou a Metro a comprar os direitos e
iniciar a pré-produção com o então jovem galã Clark Gable como estrela.
Não foi adiante: a pressão alemã até 1941 e a turca logo depois,
assim como o papel estratégico da Turquia durante a Guerra Fria,
forçaram o adiamento do projeto, afinal materializado de forma medíocre
em 1982.
Os genocídios armênio e judeu cruzam-se não apenas através das
metodologias de extermínio. O casal Werfel deixou a Áustria quando esta
foi anexada pelos alemães. Estabeleceram-se na França, perto de
Marselha, mas a ocupação da França obrigou-os primeiro a esconder-se no
santuário de Lourdes e, em seguida, a escapar da França cruzando os
Pirineus na ponte comandada pelo americano Varian Fry e encarregada de
salvar os intelectuais judeus da morte nos campos de extermínio. No
grupo que cruzou a pé a fronteira franco-espanhola estavam um dos filhos
de Thomas Mann (Golo Mann), seu irmão, o também escritor e político
esquerdista Heinrich Mann, e a primeira mulher do amigo vienense Stefan
Zweig, Friderike, duas filhas e genros. De trem atravessaram a Espanha e
Portugal; em Lisboa embarcaram num velho vapor grego com destino a Nova
York.
E, para cumprir uma promessa feita em Lourdes caso conseguissem se salvar, escreveu A Canção de Bernardete – logo transformado em filme de sucesso com música de Alfred Newman (1943). Morreu logo depois do fim da guerra, aos 54 anos.
Aposta na indiferença
O Holocausto eclipsou o banho de sangue perpetrado pelos turcos. Nos
últimos 70 anos o genocídio armênio só foi lembrado por força de uma
discussão bizantina sobre a qualificação de genocídio. Os turcos a
rejeitam ferozmente, mas admitem a violência da guerra. Não querem ser
comparados aos nazistas, embora os alemães tenham reconhecido o que
fizeram com todos os substantivos e adjetivos apropriados. E, por isso,
respeitados.
No domingo (19/4) nossos jornalões lembraram os 100 anos da tentativa
de erradicar os armênios da face da terra. Como obrigação cronológica,
efeméride, para cumprir uma pauta. Não lembraram a epopeia de Mussa Dagh
publicada no Brasil em 1946 (pela José Olympio) e republicada nos anos
1970 pela Editora Paz e Terra, do descendente de armênios Fernando
Gasparian, bravo combatente pela democracia brasileira.
Evocação solta no espaço e no tempo, sem as imperiosas e imensas
vinculações e conexões, sem lembrar que genocídios se comunicam e se
propagam. Em 1939, como teria dito o Führer, ninguém se importava com o
que acontecera um quarto de século antes. Hoje, 70 anos depois, o
morticínio parece que ainda não foi suficientemente entendido.
Adolf Hitler sempre apostou na indiferença, a praga que embota os ânimos e desbota a história.
