Por ALBERTO DINES - Via Observatório da Imprensa -
Abre parêntese: há momentos – felizmente raros – em que a história
pessoal se impõe às percepções conjunturais e o relato na primeira
pessoa, embora singular, parcial, às vezes suspeito, sobrepõe-se à
narrativa impessoal, ampla, genérica. Fecha parêntese.
O descaso e os indícios de esquecimento que na sexta-feira (8/5),
rodearam os setenta anos do fim da fase europeia da Segunda Guerra
Mundial sobressaltaram. O ano de 1945 pegou-me com 13 anos e a data de 8
de maio incorporou-se ao meu calendário íntimo e o cimentou
definitivamente às efemérides históricas que éramos obrigados a decorar
no ginásio.
Seis anos antes (1939), a invasão da Polônia pela Alemanha hitlerista
– e logo depois pela Rússia soviética – empurrou a guerra para dentro
da minha casa através dos jornais e do rádio: as vidas da minha avó
paterna, tios, tias, primos e primas dos dois lados corriam perigo. Em
1941, quando a Alemanha rompeu o pacto com a URSS e a invadiu com
fulminantes ataques, inclusive à Ucrânia, instalou-se a certeza: foram
todos exterminados.
A capitulação da Alemanha tornara-se inevitável, não foi surpresa,
sabíamos que seria esmagada pelos Aliados. Nova era a sensação de paz, a
certeza que começava uma nova página da história e perceptível mesmo
para crianças e adolescentes A prometida quimera embutida na frase
“quando a guerra acabar” tornara-se desnecessária, desatualizada.
A guerra acabara para sempre. Inclusive para nós brasileiros, os
únicos latino-americanos que foram ao Velho Mundo ensinar que o ódio não
era a solução, sobretudo o ódio aos “diferentes” e “inferiores”.
Enquanto os destacamentos da Força Expedicionária (FEB) e da Força Aérea
Brasileira (FAB) retornavam da Itália e eram delirantemente recebidos
na Avenida Rio Branco, da ex-capital federal, matutinos e vespertinos –
mais calejados do que a mídia atual – nos alertavam que a guerra
continuava feroz não apenas no Extremo Oriente, mas também na
antiquíssima Grécia, onde guerrilheiros de direita e de esquerda,
esquecidos do inimigo comum – o nazifascismo – se enfrentavam para
ocupar o vácuo de poder deixado pela derrotada barbárie.
Sete décadas depois – porção ínfima da história da humanidade –,
aquele que foi chamado Dia da Vitória e comemorado loucamente nas ruas
do mundo metamorfoseou-se em Dia das Esperanças Perdidas: a guerra não
acabou. Os Aliados desvincularam-se, tornaram-se adversários. A guerra
continua, está aí, espalhada pelo mundo, camuflada por diferentes
nomenclaturas, inconfundível, salvo em breves hiatos sem hostilidades,
porém intensos ressentimentos.
Modelo de paz
Gerenciadora da memória, nossa imprensa deixou escapar um marco
importantíssimo na história da humanidade. Deixou para o dia seguinte o
registro álgido das solenidades, passou para as gerações seguintes a
sensação de que nada de importante acontecera e que a História é um mero
conjunto de histórias encerradas. Sabemos que não é.
A Guerra Fria foi quentíssima, continua acesa, sem ideologias, mas
com bandeiras tacanhas, esfarrapadas, ainda mais ensandecidas. As
Guerras Santas acirraram-se. A deportação de povos inteiros iniciada
ainda na Primeira Guerra Mundial com o genocídio armênio e seu mortífero
aperfeiçoamento na Segunda Guerra Mundial com o Holocausto dos judeus
europeus continua até hoje. Os sucessivos extermínios na África por
razões tribais ou religiosas liquidam milhões de inocentes e produzem
êxodos e naufrágios que convertem o Mediterrâneo, berço da civilização
ocidental, num silencioso memorial de calamidades.
Se a fugaz promessa e a brevíssima paz do 8 de maio não mereceram as
devidas comemorações e revivescências, a certeza de que as guerras são
contínuas, infindáveis, deveria ser constatada aos brados. Como
advertência de que não basta suspender tiroteios ou obrigar vencedores e
vencidos a sentarem-se juntos, em pé de igualdade, para assinar uma
papelada inútil.
Indispensável extirpar os motivos que levam à loucura nações e
civilizações aparentemente sábias e sossegadas. França e Alemanha são
admiráveis exceções que não podem ser esquecidas. Compreenderam que
conflitos entre nações são transbordamentos de conflitos internos que
democracias desleixadas e a demagogia dos canalhas permitem magnificar e
espalhar-se.
A Guerra Fria nos impôs a trágica experiência da ditadura militar.
Outras guerras distantes poderão nos aproximar e enfiar em confrontos
indesejados. Guerras podem começar como casos de polícia, vitrines
quebradas e espancamentos – a Noite dos Cristais, a Kristallnacht, na
Alemanha de 1938 está aí para nos lembrar que um quebra-quebra pode
desembocar em catástrofes além-fronteiras.
Pivôs centrais de cinco catástrofes europeias e mundiais (a partir do
século 17 até o 20), França e Alemanha deveriam servir de modelo para
construir a paz efetiva, real, funcional.
“Quando a guerra acabar” é o título de um sonho cabível,
perfeitamente realizável. Exige apenas a obrigação de lembrar e esperar.
A imprensa do dia seguinte
Não fosse a estreia do novo longa-metragem de Vicente Ferraz, A Estrada 47,
que tem como cenário a participação da FEB na luta contra o
nazifascismo na Itália, os jornalões de sexta-feira (8/5) teriam passado
ao largo do fim da Segunda Guerra na Europa. Graças à resenha de Luiz
Zanin no “Caderno 2” do Estado de S.Paulo, o mais internacionalista dos jornais brasileiros manteve uma tradição que o descabido destaque ao inacabável Chatô evidencia estar prestes a encerrar-se.
Graças a um suplemento pago pelo governo russo, a Folha de S.Paulo
lembrou a data com um viés distorcido, absurdamente russófilo, que em
1945 mesmo a imprensa oficial soviética teria escrúpulos em assumir.
“Com a indiferença dos Aliados”, diz o chapéu da capa, “o evento promete
pompa.” Preparado sem a participação da redação da Folha, o
folheto coloca a URSS fora da esfera dos Aliados e esquece que a
ausência de chefes de governo europeus é uma represália ao empenho do
Kremlin em açambarcar um país independente e vizinho, a Ucrânia. Esta é
uma matéria paga – ou informe publicitário – que o jornal veiculador tem
obrigação de comentar nas edições seguintes sob pena de parecer vendido
ao antigo “ouro de Moscou”.
A grande surpresa do mais recente 8 de maio foi o material histórico produzido pelo Jornal Nacional. Apesar dos problemas de edição ou emissão que o editor-chefe/âncora William Bonner driblou com bom-humor, o burocrático JN mostra que mantém as condições de voltar a ser palpitante. E adulto.
